terça-feira, 30 de setembro de 2008

ENSAIO SOBRE A COVARDIA



Machado da Silva

Correio do Povo, 30/09/2008Cada lugar tem as suas rivalidades incontornáveis। No Rio Grande do Sul, sou colorado, maragato e Cyro Martins, enquanto outros são gremistas, chimangos e Erico Verissimo. Em Portugal, sou Lobo Antunes, enquanto metade do país é José Saramago. É sempre o mesmo esquema. Lobo Antunes é cético, cínico, irônico, barroco e desconstrutor de mitos. Saramago crê. Dá lições de moral. Aposta no futuro, até no futuro do passado, conservando sua carteirinha de comunista nem que seja para fazer gênero. Mesmo assim, fui ver 'Ensaio sobre a Cegueira', dirigido pelo mauricinho Fernando Meirelles. Eu implico com Meirelles e com Walter Salles. Cada vez que os dois fazem algo, há um batalhão de bajuladores para dizer logo que finalmente o mundo tem uma nova obra-prima. É sempre menos do que dizem esses lobistas de plantão, entre os quais se destacam Contardo Calligaris e Jurandir Freire. O filme é legal. Bem menos chato que o livro. O bom de certos filmes é que dispensam muita gente de ler alguns livros rebarbativos. A idéia de Saramago foi genial. A execução bem menos. É a história da covardia humana. Qualquer pessoa razoavelmente lúcida sabe que a humanidade não é confiável. Uma maneira, por exemplo, de falar do Holocausto. Mas não dos homens-bomba de hoje, que morrem por suas causas, muitas vezes absurdas ou patéticas, mas não aceitam a humilhação passiva. Jean Baudrillard dizia que era essa a superioridade dos terroristas em relação à ideologia ocidental da morte zero, do risco zero, da incapacidade de morrer por uma idéia. O problema do filme e do livro é que, como quase sempre acontece com Saramago, ele pesa a mão na parábola. A mensagem é redundante: a humanidade não enxerga o essencial, não vê um palmo à frente do nariz, não percebe que se extravia em mesquinharias deixando o relevante - o amor, a generosidade, a cooperação, os bons sentimentos, a solidariedade, a mão estendida - de lado. Como duvidar disso? Mas é explícito demais. O fato de só uma pessoa continuar enxergando entre todos os atingidos pela súbita cegueira parece indicar algo ainda mais óbvio: a necessidade de um líder de visão ou de uma vanguarda iluminada. Pode-se, contudo, sair do cinema com a mensagem inversa: não tem jeito, o homem é mau por natureza e, em qualquer situação, seguirá os seus instintos mais baixos. Ou, ainda, com uma leitura menos extremista: há sempre bons e maus, parasitas e parasitados, cretinos e nem tão cretinos assim. Depende.Saramago remete à velha lição de Hobbes: o homem é o lobo do homem. Ainda é nobre demais. Filosófico demais. O homem é o cão. Místico demais. O homem é o cachorro do homem. Mais atual. Em todo caso, não precisa ser muito esperto para ter essa sacada. 'Ensaio sobre a Cegueira' mostra que não há nada de novo no front. Cinismo, maldade, ambição desmesurada, covardia e falta de caráter continuam a travar um combate diário com os seus opostos e, com freqüência, levam vantagem. Criativo, o Brasil antecipou o livro inteiro de José Saramago numa frase publicitária que marcou época, a chamada Lei de Gérson: 'Eu gosto de levar vantagem em tudo, certo?'. Errado. Mas vá convencer os defensores de que só a competição melhora o mundo dessa verdadezinha tão sem graça. O sujeito sai do cinema com uma certeza: pior cego é o que vê demais.



sábado, 27 de setembro de 2008

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Freud explica?


Sexta-feira, Maio 18th, 2007

Jean-Pierre Lebrun e o ressurgimento de Robinson Crusoé

O nono encontro do curso de altos estudos Fronteiras do Pensamento trouxe dois grandes nomes da psicanálise atual, o francês Charles Melman e o belga Jean-Pierre Lebrun com as conferências O pensamento de Fronteiras e Subjetividade e laço social, respectivamente. Apresentadas pela jornalista Tânia Carvalho, na noite de terça-feira, 16 de maio de 2007, as palestras tiveram o mesmo tema principal, a aquisição dos códigos de linguagem social e a conseqüente “perda do gozo”, conceito já analisado por Sigmund Freud e retomado por Jacques Lacan.

Partindo da atual incapacidade dos pais de dizerem “não” a seus filhos, o primeiro convidado da noite, Jean-Pierre Lebrun, discorreu sobre a mutação dos laços sociais, causada por indivíduos que hoje negam os interditos fundamentais ao ser humano − sentimentos de culpa, dúvida, escrúpulos, inibição do pensamento e da ação etc. −, responsáveis pela perda do gozo durante o processo de aquisição dos códigos da linguagem e da sociedade. Segundo o especialista, a figura da criança, que segue suas próprias leis e é ignorante quanto a conceitos de certo e errado, vai de encontro às regras sociais ao incorporar os códigos da linguagem. “O enfant, então” (criança em francês – aquele que não fala), “vai precisar subjetivar, tornar suas, as leis em todos os níveis impostos. Há a perda do gozo para que algo se implante: a capacidade de falar”, elucida.

Continuando o raciocínio, o psiquiatra fez uma análise histórica da sociedade que outrora assumia uma organização hierárquica piramidal, tendo no topo a figura de Deus e dos seus representantes na Terra. Porém, atualmente, por meio do discurso da ciência, do questionamento das autoridades religiosas e políticas, da mão invisível do neoliberalismo, que acaba por extinguir a necessidade de um comando maior que organize as estruturas e da instituição da democracia – como exemplifica o médico –, o homem parece destruir as posições sociais diferentes das suas próprias, que Lebrun chama de “lugar de exceção” ou “lugar de diferença”. “O que antes se colocava no lugar de Deus, hoje é compartilhado pelo povo; tornam-se lugares sociais e perdem a necessidade de existir. Tornamo-nos seres autônomos. A perda do gozo necessária para a humanidade passa a ser questionada”, afirma, explicando a conseqüência da falta de uma liderança a ser respeitada e seguida pelo coletivo, e acrescenta: “A noção do interdito, que servia para regular, também perde o efeito. Hoje não há mais regulação, o que é ótimo para a economia de mercado. Mas, na sociedade concreta, este desmanche do lugar de exceção deslegitima aqueles que têm por tarefa assumir a perda do gozo, como professores, que precisam dizer não aos alunos ou dar um conceito negativo, ou políticos, que se encontram numa impossibilidade de guiar o povo”.

A construção do sujeito, feita pela educação proveniente dos pais, também se desfaz, retoma o médico. Sem as regras e interditos, cria-se um sujeito para o qual a chance de intervir na sociedade foi banida. A criança se torna um homem que não produz, um sujeito que, como conceitua o colega de conferência Charles Melman, não tem gravidade, que flutua em meio às classes desfeitas. Lebrun esclarece a figura deste novo homem, que já não faz mais suas escolhas, pois “o ato de optar acarreta em assumir a perda do que não escolho”. Este homem que é a personificação da criança generalizada, conceito criado por Jacques Lacan, que não aceita se deixar limitar por algo em proveito do coletivo, “é como um Robinson Crusoé cercado por outros Robinson Crusoé, que não querem encontrar ninguém, são jovens traumatizados pelo encontro”, argumenta.

Os interditos fundamentais aos seres humanos, ao serem negados, custam um alto preço para o belga. Da negação do interdito do assassinato, surge uma violência sem direção, generalizada, de um indivíduo que já não sabe mais do que se queixa. “Temos que fazer uma leitura destes sujeitos como apelos mudos por alguém que os tirem deste impasse”, mostra o psicanalista, enfatizando seu papel como profissional da área, e segue: “O discurso do laço social como é promovido hoje, livre do lugar de exceção, provoca uma grande confusão. As trocas humanas não podem entrar no campo das trocas comerciais, pois não podem se livrar das características fundamentais aos homens. Ao negarmos o lugar de diferença, criamos a dificuldade de estarmos diante de alguém que não quer o mesmo que nós. Como teremos o lugar de exceção para optarmos pela decisão final?”, questiona, trazendo a simples situação de um casal que deseja viajar. Se um preferir ir para o campo e o outro para a praia, sem lugar de diferença, dentro da esfera de negação dos limites, não haverá parâmetros para escolhas e inevitavelmente chegaremos a incessantes conflitos.

Para concluir a palestra, Jean-Pierre Lebrun aponta a importância dada à televisão quando utilizada como subterfúgio para escapar de possíveis discussões, uma realidade européia nem tão distante da brasileira. “Hoje impedimos os conflitos evitando que o sujeito analise seu próprio lugar. Por exemplo, na Europa, 60% dos jovens têm televisão em seus quartos. É um modo eficaz de evitar o conflito na família na hora de optar pelo programa. Cada jovem poderá ser um Robinson Crusoé sozinho em seu quarto. Os pais livram as crianças do confronto com o Outro – logo na fase em que alguém deve ajudá-los a controlar suas pulsões mortíferas, justamente aí há este abandono. Como um adolescente que escapou deste trabalho de elaboração das atividades de construção da psique pode reagir? Só lhe resta jogar-se pela janela, ou seja, resolver a violência de forma mais violenta ainda”.

O homem sem fronteiras de Melman

Dialogando com a primeira exposição do colega, Charles Melman iniciou expondo a angústia natural de um homem que nasce livre das regras de conduta e precisa construir seu comportamento. Preso nos confrontos com outros homens e no direito natural, que estabelece mais leis intrínsecas à humanidade, ele se obriga a pensar as restrições do bem e do mal, do correto e do injusto. Frente ao que os gregos denominaram temperância – a moderação do comportamento instintivo animal, ou a regulação do impulso selvagem –, este homem não pode mais permitir a totalidade do gozo, “pois o que o diferencia dos outros animais é justamente a medida”, ilustra o psicanalista. “Com origens numa espécie de direito que vem aniquilar a humanidade com base na autoridade divina, esta moderação, ou recalcamento do desejo como norma social, é a causa das neuroses”, completa.

Seguindo a explicação da corrente freudiana, Melman esclarece que a renúncia ao gozo, a qual Lebrun já havia citado, implica a neurose. Através do tratamento analítico, Freud percebe que “o paciente descobre que seu gozo estava organizado pela perda de seu objeto mais caro – no complexo de Édipo –, o limite de poder livremente passar ao gozo sexual. Com a perda deste objeto essencial e sem o reconhecimento desta instância guardiã limite, que é a mãe, ele não mais se fixa em projeções”, relata o especialista, que conclui o raciocínio explicando que as patologias psiquiátricas surgem ao negar este limite natural ao homem, ao recusar esta fronteira da linguagem constitutiva e à qual ele está inevitavelmente exposto.

Segundo Melman, a linguagem é um sistema de códigos similar à lógica estudada pelos gregos e traz a certeza de uma falha central, a impossibilidade de responder todas as questões que ela mesma levanta, como já propôs o matemático alemão Kurt Gödel e seu “Teorema da Incompletude”. Da tentativa de escapar deste limite, surgem as patologias, como explica: “A linguagem é um sistema impreciso e inadequado. Se eu tiver acesso a uma língua precisa, mergulho num sistema patológico de pensamento infinito, que é a paranóia. A bulimia e a anorexia, porém, são uma tentativa de possuir e incorporar este limite”, finaliza.

O segundo conferencista termina a noite apontando a importância de pensarmos as fronteiras que têm como objeto um novo homem e uma nova realidade que, para Charles Melman, é “esse mundo onde nada mais parece impossível, onde tudo é permitido। É possível que isso seja equivalente à suspensão do pensamento. Carecemos de pensamento há anos. Esperamos que aqueles que intitulamos pensadores nos dêem meios de compreender os fenômenos que nos arrastam, de nos suprir com a diferença que parece surgir deste pensamento, deste pensamento feroz”.


दो ब्लॉग http://backstagenet.hospedagemdesite.com/fronteiras/blog/?m=200705

Conferência ministrada em 15/05/2007.