terça-feira, 1 de dezembro de 2009

01 de dezembro de 2009 | N° 16172AlertaVoltar para a edição de hoje

CLÁUDIO MORENO

  • Elas preferem os tolos?

    No tempo em que os deuses ainda desciam do Olimpo em busca do amor das belas mortais, Apolo tinha tudo para ser o partido mais cobiçado por todas. Além de ser o deus que curava as doenças e os ferimentos, ele presidia – sempre acompanhado das Musas, suas encantadoras ajudantes – todas as formas de música, de canto e de poesia. Sua figura serena era a encarnação do equilíbrio harmonioso entre o intelecto e a beleza física; os artistas sempre o representaram como um homem jovem, de porte atlético, com feições refinadas e um semblante inteligente – um modelo de beleza viril (e não é por acaso que até hoje o dicionário define um “apolo” como um homem belo, forte e elegante). Somem a tudo isso o fato de ser solteiro, e fica difícil imaginar que alguma mulher, antiga ou moderna, pudesse resistir a um homem com tantas qualidades.

    Infelizmente, nem tudo foram rosas para ele, pois foi rejeitado por mais de uma pretendida. O caso mais constrangedor foi o de Marpessa, uma princesa de extraordinária beleza: ele estava tão apaixonado que, numa atitude sem precedentes para um deus da sua importância, pediu-a prosaicamente em casamento – para ficar sabendo, aturdido, que um simples mortal, um tal de Idas, príncipe de um reino vizinho, também tinha entrado na disputa. Como era inevitável, os dois rivais um dia se defrontaram, primeiro com palavras, depois com os punhos. Apesar de desigual, a luta era terrível, e Zeus foi obrigado a intervir para apartar os dois pretendentes. Que a moça decidisse: com qual dos dois casaria? Para surpresa de todos e para escândalo de muitos, ela optou por Idas, alegando – quem sabe era mero pretexto? – que ela não teria uma vida feliz ao lado de um deus tão célebre e tão cultuado por toda a Grécia.

    Dá para imaginar o retorno de Apolo ao Olimpo, cabisbaixo, derrotado, inaugurando, talvez, o mote que os homens despeitados repetem até hoje quando são trocados por algum rematado cretino: “É sempre assim: elas preferem os tolos!”. Os que usam esta ideia como consolo costumam reforçá-la com o exemplo de tantos gênios e artistas maltratados por suas mulheres – e apresentam terríveis exceções para reforçar a regra: daquelas que enfrentaram o desafio de ter um marido brilhante e criativo, muitas foram castigadas por sua ousadia, como lamentou tragicamente Clara, mulher de André Malraux: “Aos poucos eu fui percebendo que viver ao lado dele era um presente magnífico que eu pagava, dia a dia, com meu próprio aniquilamento”. “Eu não disse? É assim mesmo: elas não suportam o brilho!”, exulta Apolo, eterno ressentido – enquanto isso, talvez bem próximo dali, Afrodite trata de confortar alguma ninfa desiludida de amor, com palavras muito semelhantes, cheias de amarga ironia: “Não chores, minha filha, que não vale a pena; os homens sempre preferem as mais tolas – e as mais magras!”.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

RAZÃO, CRENÇA E DÚVIDA

08 Outubro 2009




Onde se manifesta a razão? Na arrogância de certezas absolutas ou na capacidade de duvidar?


MEU PRIMEIRO contato com a história que segue foi em junho passado, no blog de Richard Dawkins (www.richarddawkins.net, site que se autodenomina "um oásis de pensamento claro"). Dawkins é o evolucionista britânico que se tornou apóstolo do racionalismo ateu e cético, escrevendo, entre outros livros, o best-seller mundial "Deus - Um Delírio" (Companhia das Letras, 2007).

Mas eis a história. Em 2002, na Austrália, o casal Sam, de origem indiana, perdeu a filha, Gloria, de nove meses.

A menina, a partir do quarto mês, apresentou sintomas de eczema infantil, que é uma condição alérgica que afeta mais de 10% dos bebês e, geralmente, acalma-se ou some aos seis anos ou na adolescência. As causas do eczema infantil não são bem conhecidas; a medicina administra a condição da melhor maneira possível, esperando que passe. O problema é que o eczema (pele seca com prurido) dá uma vontade de se coçar à qual as crianças não resistem, e a pele, ferida, abre-se para qualquer infecção. Foi o que aconteceu com Gloria, que morreu de septicemia.

Não foi falta de sorte: o pai de Gloria é homeopata e, em total acordo com a mulher, medicou a menina só com remédios homeopáticos (insuficientes na condição da menina). Isso até o fim, quando ela definhava pelas infecções internas e externas. Gloria foi levada a um hospital três dias antes de morrer: as bactérias já estavam destruindo suas córneas, e os médicos só puderam lhe administrar morfina para aliviar seu sofrimento.

Os pais de Gloria foram presos, acusados de homicídio por negligência e, no fim de setembro, condenados pela Justiça australiana: o pai, a oito anos de prisão, a mãe, a cinco anos e quatro meses. Segundo o juiz, Peter Johnson, ambos os pais "faltaram gravemente com suas obrigações diante da filha": o marido pela "arrogância" de sua preferência pela homeopatia e a mulher pela excessiva "deferência" às decisões do marido.

Os termos da decisão de Johnson são admiráveis. A obediência -ao marido, no caso-, seja qual for seu fundamento cultural, nunca é desculpa; ela pode ser, ao contrário, o próprio crime. E, sobretudo, o marido é condenado não por recorrer à homeopatia, mas pela "arrogância" que lhe permitiu perseverar em sua crença e em sua decisão diante do calvário pelo qual passava a menina.

A sentença de Peter Johnson é, para mim, um modelo de racionalidade, porque estigmatiza a certeza independentemente do objeto de crença. Ou seja, o juiz não discute o bem fundado da autoridade do marido e, ainda menos, os méritos respectivos da homeopatia e da medicina alopática. Tampouco ele quer limitar a liberdade de opinião, garantida pela Constituição; a sentença penaliza apenas, por assim dizer, a rigidez.

Se me coloco no lugar dos pais de Gloria, não consigo imaginar uma crença, por mais que ela possa ser crucial para mim, que resista à visão do corpinho de minha filha transformado numa ferida aberta e purulenta.

Antes disso, eu (embora confiando, a princípio, na medicina alopática) já teria convocado não só os homeopatas (o que, aliás, seria uma banalidade, visto que a homeopatia é uma especialidade médica reconhecida) mas também todos os xamãs, feiticeiros e curandeiros que me parecessem minimamente confiáveis. E, é claro, embora agnóstico, eu rezaria, sem nenhuma vergonha e sem o sentimento de trair minhas "convicções", pois a primeira delas, a que resume minha racionalidade, diz, humildemente, que há muito no mundo que minha razão não alcança.

Se fosse testemunha de Jeová, e minha filha precisasse de uma transfusão (que a religião proíbe), abriria imediatamente uma exceção. Mesma coisa se fosse cientologista, e minha filha precisasse de ajuda psiquiátrica. Sou volúvel e irracional? O fato é que tenho poucas crenças (provavelmente, nenhuma absoluta), e acontece que, para mim, a razão é uma prática concreta, específica: um jeito de pesar e decidir em cada momento da vida.

O surpreendente é que, ao ler os comentários dos leitores no blog de Dawkins, os "racionalistas" parecem tão "rígidos" quanto o pai de Gloria. "A razão" (que eles confundem com uma visão aproximativa do estado atual da arte médica) é, para eles, um objeto de fé, uma crença pela qual facilmente condenariam os "infiéis" à fogueira.

Com o juiz Johnson, pergunto: onde se manifesta a razão? Na arrogância das certezas ou na capacidade de duvidar?

ccalligari@uol.com.br

sábado, 5 de setembro de 2009

As mulheres de Atenas

Chico Buarque de Holanda deu a letra, ao lembrar “as mulheres de Atenas” em que devemos nos mirar. Afinal de contas, é para os braços “de suas pequenas”, “Helenas”, que os “bravos guerreiros” voltam. O poeta e compositor está certo: Helenas e outras figuras femininas, nem todas beldades como a esposa de Menelau, mobilizaram o imaginário do Ocidente desde sua expressão original, entre a poesia produzida pelos gregos da Antiguidade.

Comecemos, é claro, por Helena. A lenda conta que ela motivou a guerra entre os aqueus e os troianos, guerra que durou 10 anos, mobilizou o melhor da elite militar grega e foi assunto de tantos poemas, constando a Ilíada e a Odisseia, atribuídas a Homero, entre os mais familiares. Casada com Menelau, Helena abandonou o marido para seguir Páris, filho de Príamo, o soberano de Troia, que recepcionou com charme e elegância a nora que acabou por desencadear a destruição de sua cidade.

A mesma tradição lendária sugere que Helena era a mais bela mulher de seu tempo. Como se trata do tempo mítico, ela é, para sempre e invariavelmente, a mais bela mulher, incomparável figura que paira imutável na fantasia do Ocidente. Por isso, sua presença na poesia e no pensamento grego é via de regra positiva e favorável. Na Ilíada, em conversa com Helena junto aos muros de Troia, de onde observa a movimentação da tropa dos aqueus, Príamo comenta que não considera a moça culpada pelos sofrimentos que vêm abatendo sua cidade. Na Odisseia, Helena já retornou aos braços de Menelau, acolhendo em seu palácio a Telêmaco, o filho de Ulisses que procura rastros do pai desaparecido, tendo-se passado outros dez anos, desde o final das lutas nas praias de Troia. Helena, bela e indiferente à passagem do tempo, chora a ausência do herói, ainda que o tenha visto pela última vez quando Ulisses, graças ao artifício do cavalo de madeira, orquestrava a conquista da até então inexpugnável cidadela, onde ela residia.

Sedutora, Helena é também ambígua e contraditória, retrato legado por Homero a seus sucessores. Entre esses, contam-se o poeta Estesícoro, que cogitou ter sido a verdadeira Helena substituída por um simulacro, este, sim, carregado por Páris para Troia, o sofista Górgias, que lhe dedicou uma oração elogiosa, e o dramaturgo Eurípedes, cujas tragédias ressaltam a duplicidade de sua personagem. Com efeito, se em As troianas a moça é perigosa, sem perder o fascínio que atrai os homens, entre os quais o marido Menelau, em Helena, ela mostra-se dócil, saudosa do cônjuge e parceira leal, quando se trata de encontrar um modo de ambos fugirem do príncipe que, no Egito, a aprisiona e deseja tê-la como esposa.

A Helena de muitas faces, sempre, porém, sedutora e fascinante, migra da poesia grega para a literatura ocidental, sem perder a identidade que a faz ímpar. Até Machado de Assis flertou com Helena, em seu romance de 1876, cuja protagonista, assinalada pela personalidade escorregadia e incerta, contudo, sedutora e cativante, antecipa a Capitu de Dom Casmurro.

Do outro lado de Helena, colocam-se as esposas fiéis, que não cansam de aguardar seus maridos, tecendo, no intervalo, “longos bordados” e suportando “mil quarentenas”, conforme canta Chico Buarque. O paradigma por excelência é Penélope, que espera por 20 anos o retorno do trêfego Ulisses. Porém, cabe lembrar Dejanira, a um tanto ingênua esposa de Héracles, que, envolvido com inúmeros trabalhos, não confere a ela a devida atenção, embora, entre uma tarefa e outra, não perca a oportunidade de namorar outras princesas, conforme expõe Sófocles, em As traquínias. Tal como Penélope, Dejanira teme perder o amor do herói, mas seu bordado, convertido em uma túnica envenenada, determina o final trágico do poderoso guerreiro.

Confiantes em suas mulheres, os maridos se deixam levar por sua falta de sagacidade. Ou talvez pela arrogância de vencedor, que os cega. Ou enfim pela imperícia com que lidam com questões familiares. Afinal, boa parte das tragédias encenadas por Sófocles e Eurípedes situa-se no âmbito doméstico, representando uma ou mais das seguintes situações. A primeira diz respeito à exposição do adultério, praticado pelo marido em Medeia, de Eurípedes, e pela esposa em Agamemnon, de Ésquilo. A segunda situação aprofunda o tema dos amores proibidos, ao dizer respeito à paixão de mães pelos filhos, como ilustra a relação entre Jocasta e Édipo, no drama de Sófocles, transposição cênica do mito inspirador da psicanálise freudiana. Também o Hipólito, de Eurípedes, lida com a atração filial, sendo a situação do incesto apresentada de modo deslocado, já que traduzida por Fedra, a jovem madrasta do protagonista da peça.

Não menos complexa, e mais povoada, é a terceira situação, a das filhas amorosas dos pais. Electra e Ifigênia, descendentes de Agamemnon, exemplificam o caso, a primeira protagonizando três tragédias diferentes, assinadas, cada uma, por um dos grandes nomes – Ésquilo, Sófocles e Eurípedes – do teatro ateniense, sintoma, pois, da relevância do tema para o imaginário dos gregos. Mas Antígona, personagem do drama homônimo, não fica atrás, não porque dirija seu afeto incestuoso para o pai, mas porque o desloca para Polinices, seu falecido irmão, em virtude do que perde a vida, provocando, por tabela, o suicídio de Hémon, seu noivo.

Assim colocadas as sinopses dos dramas atenienses do século V a. C., deparamo-nos com situações dignas do brasileiro Nelson Rodrigues. A conclusão sinaliza o fato de que aquelas mulheres de Atenas, ainda que distantes no tempo e no espaço, estão muito próximas de nosso universo psíquico e emocional. Logo, podemos entendê-las como nossas contemporâneas, inspiradoras do melhor que a literatura foi capaz de produzir no passado e exibe na atualidade.

São elas as únicas que repercutem na cultura ocidental? Não, pois, a seu lado, podemos colocar as Eva, Lia, Raquel, Madalena, das Bíblias hebraica e cristã. Mas essa é outra história e outro percurso.

REGINA ZILBERMAN * | * Professora da UFRGS e da FAPA

Publicado:http://zerohora.clicrbs.com.br 05/09/2009

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

JORNADAS CLÍNICAS DA APPOA


Os mistérios da mente e sua capacidade de atormentar e até mesmo enlouquecer os homens têm sido objeto de interesse e estudo tão antigos quanto a própria história humana. Da tentativa de extirpar a “pedra da loucura”, na Idade Média, passando pelo inconsciente freudiano, até as atuais propostas de interpretar e tratar os males psíquicos pela via orgânica, muitos caminhos foram e são percorridos.

Do ponto de vista da psicanálise, a porta de entrada para o inconsciente foi a histeria. Tratava-se, inicialmente, do específico da neurose. O trabalho com o inconsciente levou Freud a formular outras questões a respeito das vias da delimitação do psiquismo, passando por diferentes organizações neuróticas, como a fobia e a neurose obsessiva, mas não se restringiu a elas.

Foi através do estudo do Caso Schreber que Freud articulou grande parte de suas proposições teóricas sobre o campo da psicose, especificamente, a paranóia, bem como aprofundou conceitos importantes como o narcisismo, extraindo desta articulação consequências fundamentais para a prática psicanalítica.

Jacques Lacan retomou essa obra de Freud no seminário “As psicoses” ou “As estruturas freudianas das psicoses”, de 1955-1956. Este seminário foi proferido por Lacan na gestação do estruturalismo na França, corrente de pensamento que elegeu em vários momentos como interlocutor de questionamentos que desejava transpor para a psicanálise.

No terreno específico das modalidades clínicas, ou estruturas clínicas como frequentemente chamamos, a influência estruturalista se faz presente, seja pelo nome que porta, seja porque neurose, psicose e perversão possuem cada uma delas, para além dos matizes e formas diferentes, um núcleo derivado das relações com o Nome-do-Pai.

Mas hoje será que referendaríamos a influência do estruturalismo? E se não, seria agora por influência de uma cultura que não se interessa mais pelo que permanece? Ou por que o invariante da estrutura desmerece as muitas mudanças que um sujeito é capaz de realizar, independente de sua estrutura clínica? Ou ainda, a propalada mutabilidade e velocidade de nosso tempo influenciam a noção de um psiquismo que muda, transforma-se? Os sintomas têm mais relevância que a estrutura de fundo? O aparente importa mais que a causa dele? Se sim, isto implica um fechamento para o inconsciente enquanto instância não aparente?

Seja onde procuremos possíveis influências da cultura atual, encontramos referências à mutabilidade. Importa o que se desfaz, o que se transmuta, e a concepção de sujeito moderno acompanha essa noção. Mas e o sujeito da psicanálise? Como consideramos a tensão entre o fixo e o cambiável? Como incluir a noção de mutabilidade sem recair na imprecisão dos diagnósticos fenomenológicos? Questões centrais do nosso trabalho que permearão o debate proposto para essas Jornadas.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

O QUE A GENTE NÃO DIZ!





A jornada de abertura dos trabalhos deste ano da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA, trás a tona um tema sempre atual, discutido nas conversas sociais, nas revistas, na literatura: O ciúme. O “monstro de olhos verdes” como escreve Shakespeare em Othello. Capitu, com seus olhos de ressaca em Machado de Assis... Na literatura encontramos desde Freud material suficiente para refletir sobre o tema dos afetos. Numa carta a Schnitzler, escritor, Freud diz: “sua profunda apreensão das verdades do inconsciente e da natureza biológica do homem, o modo como o senhor desmonta as convenções sociais de nossa sociedade, a extensão em que seus pensamentos estão preocupados com a polaridade do amor e da morte, tudo isso me toca com uma estranha sensação de familiaridade. Assim, ficou-me a impressão de que o senhor sabe por intuição - realmente, a partir de uma fina auto-observação tudo que tenho descoberto em outras pessoas por meio de laborioso trabalho”¹. Desde que Sigmund Freud fundou a psicanálise que a condição excêntrica do homem possibilita inúmeras reflexões. Ele levantou a questão do mal-estar e elaborou uma teoria centrada na analise do sofrimento psíquico, muito abordado na literatura. Nesse contexto, o do sofrimento psíquico, que a psicanálise intervém na tentativa de sustentar a subjetividade e a condição desejante de um sujeito desamparado frente às forças da natureza. Assim, os temas para reflexão são abordados nas suas mais diferente formas: “Amor, ódio, ciúme, assassinato, espera...
Como escapar de sentimentos tão batidos? De todos os que poderíamos aqui enumerar, o ciúme continua sendo aquele que tendemos a dissimular. Do mesmo modo que o alcoólatra bebe escondido, o ciúme mascara sua vergonha. Freguês dos sentimentos ausentes? Não. O ciúme não se assume. Fere. Refugia-se e desenvolve-se insidiosamente no âmago de nossa cúmplice ignorância. Obsceno, recalca-se. O ciúme nos fala de amor. Não pelo parceiro com o qual vamos trocar nossas palavras. Ele me fala do amor que me diz o quanto me amo graças a você, objeto de meus pesadelos. Eros bumerangue. Eros seria freudiano. Mas ele é freudiano! E o ódio? A flecha do ódio. Ter necessidade de alguém único que nos olhe como alguém único[...]Quem escapa a isso? Quem não sonha com um outro que seja confiável?”²
Com este fragmento de um livro belíssimo de Denise Lachaud falemos outra vez do ciúme! De que outra coisa falaremos? Não temos como escapar de sentimentos tão batidos, porque o afeto faz parte de nossa condição humana. Quando elegemos alguém para amar o fazemos por identificação narcísica: “nós nos encontramos”; quer dizer que me encontrei em um outro idealizado. Assim, se me encontrei estou completa. Nada me falta. No entanto, somos inseguros, não sabemos porque o escolhido é aquele. No ciúme é colocado em jogo o desejo, a falta e o olhar. O olhar comparece com sua face mortífera. O ciúme ofusca um sujeito que se sente um espectador excluído da cena. Mas não é um sentimento evidente e requer abordagens sutis, mesmo que seja um afeto que aflige a todos. Na tentativa de apreensão do desejo do outro o próprio sujeito se perde. Freud escreve que o ciúme pode ser delirante, pode ser normal, mas sua característica principal é a certeza: todos querem este que é objeto de meu desejo. Qualquer sinal designa o culpado. Mas como disse Diana Corso, desconfie do ciumento: é ele quem esta de olho na cerca!


¹Freud e seu duplo – Noemi Moritz Kon
²Ciumes – Denise Lachaud
Diana Corso – Psicanalista membro da APPOA

Tereza Guberovich –
Membro da Associação Espaço Psicanalítico – AEP

quarta-feira, 10 de junho de 2009

PENAS DO TIO PATINHAS

Penas do Tio Patinhas[1]

Iza Maria Abadi de Oliveira

Tio PatinhasTio Patinhas, o pato mais rico de Patópolis, conta com sessenta anos. É um personagem que atravessou décadas acompanhando e formando o imaginário infantil de muitos de nós. Criado por Carl Barks, sua estréia aconteceu em dezembro de 1947, na história Christmas on Bear Mountain (Natal nas Montanhas, no Brasil, publicada pela primeira vez em 1953 no gibi Mickey # 15, da Editora Abril), protagonizada pelo Pato Donald.

Este velho avarento, mesquinho, que só pensa em suas patacas, não casou, não teve filhos, e esconde a revelação de seu verdadeiro herdeiro. O que ocasiona muitos atritos entre seus prováveis detentores de suas patacas. A vida deste Pato se resume a vigiar e acumular suas moedas de ouro. Como disse minha filha, após a primeira leitura de um daqueles gibis: “Ele só pensa em riqueza e vive mal-humorado!”. Uma síntese oportuna para quem nem precisou percorrer seis décadas das histórias do velho para concebê-lo como o grande avarento das histórias em quadrinhos. Sua riqueza parece ser inversamente proporcional à composição de seu espírito. Tio Patinhas só opera com um cálculo em sua existência.

No entanto, é preciso não ficarmos absorvidos pela sua avareza – o atributo mais evidente de seu modo de ser no mundo. Mesmo que tenhamos a nítida impressão que com todas as suas penas, ele é um mártir da obediência cega a uma lógica utilitária da condição humana.

Transpondo a lógica econômica para uma da economia psíquica, de uma forma de funcionamento subjetivo, aquele Pato mal-humorado indica algumas luzes sobre o que é investimento e gasto.

No discurso contemporâneo de nossa cultura está presente uma sentença de que os ganhos de um investimento devem ser garantidos de antemão. Vide as inúmeras formas de ‘seguros’ existentes: de bens materiais a humanos (não devemos esquecer que sempre se paga para acioná-los). O psicanalista Contardo Calligaris definiu o neurótico como aquele que quer andar de trem, mas não quer pagar - não tem certeza que sua poltrona será confortável, se chegará na hora exata, terá uma boa companhia, etc. O valor de seus ganhos tem que ser diretamente proporcional ao preço da passagem. Facilmente, se desconhece que é preciso perder para ganhar, assim como nem sempre há um encontro entre preço e valor. Entregue a este cálculo, pode-se ficar parado na estação, vendo o trem passar.

A genialidade do Tio Patinhas é de que ele nos ajuda a pensar no quanto uma vida pode ser miserável com tantas patacas. Ele nos ensina o preço de não arriscar, de um funcionamento de vida regido apenas pela via de um cálculo; e as penas que poderiam lhe fazer movimentar, nada mais servem do que penar.



[1] Publicado na Coluna “Descronificando”, Jornal Hora H, 29/5/2009.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Fragmentos:

"E os ladroes, de onde saem? Por onde passam? Ninguém os vê. Depois se fica sabendo: esta noite arrombaram a porta, roubaram aqui, roubaram acolá. Mas como farão para não serem vistos? E nunca sabem explicar a proveniência de qualquer muamba. Lê-se sempre nos jornais: foi encontrado de posse de tal objeto, cuja proveniência não soube explicar. Diabos! Aos ladrões só se pede que expliquem uma coisa: não a quadratura do círculo ou um problema de álgebra, mas apenas a proveniência do espólio. Pois bem, ainda estou para ver um ladrão que tenha sabido explicá-la. Mas não terão nem um pouco de imaginação? Não podem inventar alguma coisa que tenha aparência de verdade? Para eles, essa proveniência deve ser o que é para os pensadores a imortalidade da alma, o infinito ou - pior - o infinito.
Coisa igualmente estranha é a obstinação com que os agentes de polícia continuam a pedir aos ladrões que expliquem a tal proveniência. Ainda nao se convenceram a ignorá-la, ainda não entenderam que os ladrões não a sabem explicar. Que os predam, então, mas nos poupem dessa penosa questão."
*Entre a mentira e a ironia -Umberto Eco