domingo, 27 de abril de 2008

O juiz, o psicanalista e o estado de exceção



Dorothee Rüdger



Palavras cortam feito lâminas. Sentenças e atos são decisões que recortam o mundo das normas e dos fatos. E nada mais será como antes. Saindo da sala de audiência ou do consultório do psicanalista, o demandante sabe que algo aconteceu ali, algo que rompeu com a mesmice, com a rotina, com o dia-após-dia, com o previsível, o explicável, com a ordem estabelecida.

Juiz, se for juiz e não um mero aplicador de leis, sabe do hiato entre o fato e a norma, entre a regra e a exceção, entre a teoria e a práxis, a validez e a eficácia, a legalidade e a legitimidade. Psicanalista que é psicanalista estudou as falhas na linguagem, falhas essas, por onde transparece o inconsciente, como nos ensinou Sigmund Freud. Sabe da radical diferença entre a cultura e o sujeito, entre o masculino, escravo da lei edípica que todos são obrigados a cumprir, e o feminino , a exceção, a invenção, como ensinou Jacques Lacan.

Decisões. Juizes e psicanalistas tomam decisões. Cometem atos, muitas vezes dolorosos, que implicam os sujeitos, que os responsabilizam.

A decisão do juiz, da jurisdição, diz da justiça que só se faz por meio da força da lei, como diz Jacques Derrida. Essa força está instalada no direito, pois sem a força da lei, a norma resta letra morta. Os revolucionários franceses fizeram da força da lei sua pedra angular. Sem força não há lei, não há ordem, não há direito. A justiça contrasta com o direito. Situada no hiato entre a lei e o mundo vivo, entre a norma e os fatos, desmistifica o direito, desconstrói sua universalidade, seu cálculo, sua linguagem neutra. Justiça é feita caso a caso. A decisão do juiz é sempre subjetiva. Sujeito da história, o juiz faz história, porque cada decisão rompe o sistema do cálculo normativo para criar algo novo: uma nova situação, um novo direito. Como não consegue agradar a gregos e troianos, a justiça provoca dessimetrias e, portanto, mudanças violentas no estatuto das partes. Assim, o ato do juiz, a decisão judicial, desconstrói constantemente o direito, ele próprio fruto do ato da força.

Justiça nos angustia. Desconhecida por natureza, infinita e incalculável, ela é “rebelde à regra”, permanece um “desejo no horizonte”, como quer Jacques Derrida. O juiz que é juiz, é um rebelde. Não bate o martelo em cima da mesa para restabelecer a ordem, mas cinde solitariamente e solidariamente os arrazoados das partes. Revoluciona o mundo simbólico da norma, desmistifica o imaginário pelo qual “a cada um se atribui o que é seu” e, pelo qual, “a justiça tarda mas não falha”. Aplicando a justiça, o juiz toca o real, aquilo que “não tem lei”, como diz Jacques Lacan. Assim, a justiça situa-se na falha da intersecção entre os três registros do nó borromeano. É sempre exceção, algo que excede. Por isso mesmo, nunca pode ser feita para todos, permanece um desejo vivo.

Carregando consigo a violência, o direito está prenhe de seu próprio paradoxo: force de loi (força da lei) para os franceses, Staatsgewalt (violência do Estado) para os alemães. A garantia da lei é a não lei, a força, o estado de exceção. Este pode ser um Estado de exceção com “E” maiúsculo. Pode ser também um estado de exceção com “e” minúsculo. Dependendo de nossas escolhas políticas (Carl Schmitt que o diga!), o Estado de exceção transfere para um ditador a soberania , a capacidade de decidir na zona cega da validade da norma para, desta maneira, garantir a ordem. Por outro lado, se acreditarmos às palavras de Giorgio Agamben, pela lógica do estado de exceção, é permitido ao povo favelado cavar dutos de água potável clandestinos e puxar luz com gambiarras na rede elétrica. Diante da necessidade, a norma é suspensa. O que vale é a (não) lei da sobrevivência. Justiça se faz pela rebeldia. E as falhas na rede de água potável corroem o morro.

A falha é a razão de ser da psicanálise desde Sigmund Freud. Afasias, atos falhos, chistes, sonhos e sintomas, enfim, o mau funcionamento do nosso aparelho de linguagem, são, como diz, as portas de saída do inconsciente habitado pro desejos recalcados pela culpa que a lei edípica nos proporciona. Para Sigmund Freud, nossa cultura constrói-se a partir do recalque de nossas pulsões de vida e de morte. O resultado é um tremendo mal-estar perante a cultura. Para espantar o mal-estar fazemos de conta que encontramos na cultura soluções para nossos males. Para cada doença um remédio, para cada ato criminoso um tipo penal, para cada problema uma solução. Assim nos ensinam nas universidades. As contradições na sociedade resolvem-se pela síntese dialética, divulgam os revolucionários marxistas. A cultura e sua ordem nos contêm. Exigem um preço alto: neuroses, psicoses e perversão nos lembram como a ordem cultural é furada.

Para além do Édipo, o buraco é mais embaixo. Se para a psicanálise cada caso é um caso, a classificação dos pacientes em neuróticos, psicóticos e perversos pode apenas auxiliar o psicanalista a realizar algo que o aproxima do juiz: tomar uma decisão. Decide sobre a questão se o paciente é analisável, decide os rumos que o caso poderia ter, seu direcionamento, decide, enfim, o ato que suspende a fala do paciente e que o desloca do lugar onde se encontra. Para tanto, tem que ser rebelde à lógica, desconfiar da norma e cortar com a lâmina da palavra o discurso estabelecido. O psicanalista deixa desnudo o estado de exceção, estado sem lei, para dar passagem ao desejo. Para o psicanalista todos os pacientes são diferentes, são como se fossem uma mulher que, avessa á estandardização, constantemente se inventa, como diz Jorge Forbes.

Quando um cidadão preterido em seus direitos provoca o poder judiciário, o juiz decide, embora na base da lei, em nome da justiça, eterna rebelde à regra. A responsabilidade é do juiz e do sujeito responsabilizado, nesse caso, pelo Outro. Quando um paciente procura um psicanalista, ele decide provocado pelo psicanalista. Radicalmente diferente dos demais, o paciente, o sujeito da psicanálise “pica” seus conceitos e fantasias e tem, assim, a chance de reinventar, cioso de sua responsabilidade diante do futuro. No fundo, é ele quem sabe. Por isso, a decisão, o ato de cortar com palavras o status quo, é dele.

do blog www.jorgeforbes.com.br

sábado, 26 de abril de 2008

Frase do dia:

"Se as dores humanas se esquecem, como se não hão de esquecer as leis?" (Machado de Assis)

Texto publicado na revista AFINAL /abril 2008

AS ESTRUTURAS FREUDIANAS DAS PSICOSES E A QUESTÃO INSTITUCIONAL

Fui entrevistada para o Informativo da Clinica de Psicologia da UNIJUI na edição de março/abril 2007

FN – Fale sobre o seu percurso na UNIJUI, e como este lhe preparou para a realização do seu trabalho. A partir disso, o que você pode dizer para os estudantes que fazem ou desejam esta formação?

Iniciei no curso de Psicologia da URI/Santo Ângelo. Após um ano, tomei conhecimento do referencial teórico do curso da Unijui para onde me transferi e me formei em 2004. Neste curso de psicologia temos um diferencial nos componentes curriculares, na formação dos professores, nas supervisões semanais, nos estágios que, por serem de um ano, nos permite passar por uma experiência singular, sustentada pela ética da psicanálise. Portanto, o curso me forneceu a base teórica/pratica para a atuação como profissional, pois a proposta do curso nos leva a sermos críticos e pesquisadores, a continuar estudando porque nosso trabalho esta em permanente construção.

FN – Como você tem dado continuidade à sua formação?

Depois da formatura dei continuidade aos estudos participando de encontros, seminários e discussões teóricas. Participo de um grupo de estudos de psicanálise em Santa Rosa, faço analise pessoal e supervisão. Alem disso, continuo meu interesse por literatura que sempre fez parte das minhas leituras. Também participo de encontros filosóficos e literários alem dos psicanalíticos, pois sabemos que a escuta clinica exige um trabalho constante sobre ela mesma e com outros saberes. Com essa formação pensamos que o lugar do psicólogo não esta dado previamente, mas deve ser construído em cada lugar onde ele for trabalhar.

FN – Quais as experiências de trabalho que lhe surgiram?

Inicialmente meu trabalho começou na Clinica Hermann em Santa Rosa, onde continuo trabalhando com atendimentos individuais. Em seguida escolhi trabalhar com Saúde Publica e surgiu uma oportunidade na cidade de Horizontina, no Centro de Atenção à Saúde Coletiva - CASC da Secretaria de Saúde. Nesta instituição trabalho na equipe de Oncologia, na Saúde mental com atendimentos individuais e coordeno o Grupo Terapêutico de Alcoolismo¹.


FN – No trabalho clinico, existiria alguma peculiaridade na escuta da(s) psicoses(s)? podemos falar em uma clinica “diferencial”?

Penso que sim, tendo a sustentação da psicanálise é possível. Neste ambiente complexo que é o trabalho institucional procuro conduzir meu trabalho tendo a ética psicanalítica como norteadora. Assim, com a transferência podemos inaugurar um espaço de escuta do sofrimento quer seja dos que buscam a instituição ou de quem cuida deles. O acolhimento e o espaço de escuta como lugar de testemunho é determinante para que possamos diferenciar estrutura de fenomenologia. Procuro assim escutar o sujeito na sua singularidade, proporcionando um espaço de fala, pois a realidade psíquica é a realidade que faz questão na clinica, levando em conta a singularidade de cada paciente, caso a caso. Neste sentido, a transferência possibilita as condições para que o trabalho possa se realizar. O diagnostico estrutural permite a compreensão da dinâmica e da função dos sintomas na subjetividade do paciente. Podemos pensar que no momento atual é preciso restituir a realização do diagnostico diferencial a partir de uma clinica que leva em conta a subjetividade.

FN – como você percebe uso de medicamentos em pacientes diagnosticados como psicóticos?

Na instituição em que trabalho todos os pacientes que recebo com o diagnostico de psicose são medicados. O encaminhamento acontece após o atendimento do medico. No trabalho institucional, há varias possibilidades de endereçamento transferencial. Proponho-me acompanhar o paciente na instituição que tem um trabalho de abordagem coletiva. Há a possibilidade de escutá-lo e escutar também quem o conduz para o atendimento. Porque muitas vezes o paciente que vem encaminhado já faz parte de outras intervenções institucionais oportunizando o encontro de diferentes discursos. Procuro não me apressar com intervenções imediatistas, mesmo nos encaminhamentos. Procuro dar espaço para que o paciente fale o quem muitas vezes, causa surpresa num primeiro momento, pois acreditam não terem muito que dizer sobre o seu sintoma. O medicamento ocupa um lugar na vida do paciente. Para alguns pacientes é a medicação que proporciona as condições de iniciar um tratamento de psicoterapia. Mas tratar do sintoma significa aborda-lo como manifestação da subjetividade, compreendendo assim podemos acolher e possibilitar seus desdobramentos. Devemos reconhecer os efeitos da medicação, mas temos que levar em conta que no existe clinica sem sujeito, esse é nosso trabalho como psicólogos.

FN – Qual o lugar da psicose no cenário contemporâneo?

No Brasil houve mudanças significativas nos últimos anos na forma de atendimento da psicose. Ate a algum tempo, era a internação por longos períodos a única alternativa possível. Na tendência atual temos a Reforma Psiquiátrica como modelo para discutir a clinica, na conquista da inclusão social, propondo um lugar de endereçamento na instituição publica. Mas podemos acreditar que a solução da internação, que muitas vezes determina a alienação do sujeito, o preconceito, a marginalização na sociedade dos cidadãos com diagnósticos de psicose, é um modelo superado mesmo? Ou ainda, o discurso das neurociências não tende a voltar a predominar por oferecer compreensões totalizantes? São questões bastante complexas que exigem um espaço amplo de discussões. Temos também as internações breves, ambulatoriais, medicamentosas e as psicoterapias. Nos CAPS encontramos as condições mais favoráveis para a especificidade da clinica das psicoses e seus impasses, alem de encontrarmos as novas praticas em saúde mental no serviço publico com o trabalho em equipe interdisciplinar como um possível lugar de acompanhamento e de endereçamento. A inserção da psicanálise junto às instituições é outro elemento importante para se construir um trabalho diferenciado. Penso ser a opção mais razoável de trabalho com a psicose: o trabalho interdisciplinar, os projetos terapêuticos pensados em equipe, a escuta de profissionais com boa formação para criar um espaço de fala sobre o sofrimento.


Texto publicado no jornal Falando Nisso da Clínica de Psicologia da UNIJUI

¹esse trabalho em Horizontina foi encerrado. Atualmente faço atendimentos na Secretaria de Saúde de Santa Rosa - FUMSSAR onde recebo encaminhamentos dos Postos de Saúde(PSF) e Ministério Público (presídio).

Fadas, bruxas e madrinhas![1]

Iza Maria de Oliveira

Era uma vez uma filha dedicada e uma mãe devota. Certo dia, num momento de dúvida acerca dos mandatos maternos em relação a sua escolha amorosa, se perguntou: “Todas as mães têm razão, mesmo que em certa medida?”. Num outro território, mas numa mesma fronteira, uma pequena menina pergunta a seu pai (separado de sua mãe): “Se você casar de novo com minha mãe, ela vai ser minha madrasta?”.

Considerando que estas interrogações sugerem alguns caminhos para pensarmos acerca do lugar materno, enderecei para outras pessoas esta mesma questão da filha devota acerca da razão materna. Alguns responderam que se assim fosse, certamente não saberiam se defender ou se tornariam psicóticos (loucos). Enquanto outras afirmaram negativamente (sic!), considerando muitas mães devoradoras como, também, humanas.

Uma das pessoas verificou: “Da minha mãe ou de mim, como mãe? Pois isso depende do lugar que respondemos. De acordo com a posição, a resposta pode mudar. Como filha, acho que sim, como mãe, não. Com criança pequena, acho que sempre temos razão, mas com filho maior, não. Depende da situação. A única certeza é que a mãe é culpada sempre”.

Outra referiu: “Se é em certa medida, não significa que têm razão”. O mais problematizador de todos, enfatizou: “Esse enunciado ‘todas as mães têm razão, mesmo que em certa medida?’ é problemático, pois o contexto determina a resposta. Mesmo que o segundo enunciado queira relativizar, o primeiro é absoluto”.

Algumas das colocações acima encontramos em seres de espíritos complexos, enquanto outras em almas um pouco “macabéas”, ou seja, àquelas que respondem, sem defesas, às contradições que uma pergunta pode conter; também, responderam aqueles que, seguros de uma verdade, temem duvidar.

Contudo, as respostas sugerem uma dificuldade das mães em possibilitar às suas filhas uma outra condição que não somente a de filha/criança. Ou seja, há uma complexidade na autorização e no reconhecimento de um lugar no sexual às filhas, pois para acontecer este deslocamento de posição se faz imprescindível suportar um processo de luto. A mãe perde um lugar de idealização: de fada admirada e dona (supostamente) de toda razão, passa a ser bruxa malvada, com poções de razão amaldiçoadas; assim, entram em cena invejas, rivalidades, etc. Assim, para uma mãe suportar este processo terá de conviver com as ambivalências inerentes a ele – mais um dos seus passos em prol do seu “padecimento no paraíso”.

O filme de Almodóvar, Tudo sobre minha mãe, é convocativo nesta via de reflexão, indicando que as mães, certas e erradas, podem apresentar aos seus filhos O bonde do desejo[2]. Lugar esse em que as razões são, por vezes, incertas; onde as interdições possibilitam ao conjunto dos filhos servis, tirânicos, rebeldes e amáveis, embarcarem, viajarem pela vida, fazendo paragens e, também, prosseguir. Afinal, parece que dizer tudo sobre a mãe é a morte, assim como a absolutização da razão materna pode matar o desejo de um filho. Pois, dizer “tudo” é da ordem da impossibilidade, assim como o interessante nesta relação não está na ordem da razão, mas da transmissão amorosa. Uma transmissão onde se oscilam os lugares de fada, bruxa e madrinha (sobre isso, indico o livro, “Fadas no Divã”, de Diana e Mário Corso, editado pela Artmed). Para finalizar, uma citação destes autores, “as ajudas benignas nos contos de fadas oferecem instrumentos, jamais uma solução. A vida raramente transforma alguém em outra coisa, ela apenas brinda com alguns acasos, fatos e contextos pelos quais uma vida pode mudar seu rumo”. Que as varinhas e as poções sirvam como instrumentos promissores na vida de nossos filhos!



[1] Texto publicado no Jornal, Hora H, em 24/11/2007.

[2] Título da peça de teatro em que a mãe leva seu filho, no dia de aniversário deste, para assistir. Trata-se do clássico de Tenesse Williams (1914-1983) “A streetcar named desire”, de 1947.

Herodes são os outros...

Ser pai não anda fácil. Antes criavam-se muitos e uns davam certo, outros nem tanto. Hoje é um ou dois e nada pode dar errado

Cachorro que late não morde. Usamos esse provérbio para dizer que aquele que expressa um desejo, ou uma ameaça, a princípio não a executará. Espichando ainda mais o raciocínio, podemos inferir que aquilo que encontra algum tipo de expressão, quer seja em palavras, pensamentos, fantasias, ou sonhos, não precisará acontecer. Os psicanalistas apostam nesse exercício de enunciação para que não chegue a ocorrer algo grave. Quando o pior acontece, denominamos isso de passagem ao ato, ou seja, uma atitude tresloucada, expressando o que se sente, ou se quer dizer, de forma perigosa, espetacular ou violenta.

A maior parte dos crimes, especialmente aqueles que são ocasionados por um momento de descontrole, são desse tipo. Essa é uma das prováveis razões do assassinato da menina Isabella. Esse arremedo de explicação do crime, se tiver sido cometido pelo pai e pela madrasta, como está sendo sugerido pela investigação divulgada pela imprensa, não o torna justificável ou perdoável.

O problema é que quando alguém morde, todos os cachorros que latem ficam suspeitos de crime iminente. É isso que sentem todos aqueles que gritam pelas ruas, se amontoam em frente ao local do crime, tentam linchar os acusados, se desmancham chorando na TV. A imprensa e o público caem como urubus em cima do caso por que todos precisam deixar bem claro que jamais morderiam, por mais que já tenham rosnado ou pensado em latir para seus filhos.

E quem não pensou? Quem não desejou que eles tivessem botão de liga e desliga, que eles se desmaterializassem naquele dia em que estavam insuportáveis e nós tão cansados? Qual o casal de amantes que não lembrou saudoso o tempo em que eles não existiam? Qual o pai ou mãe que em alguma ocasião não teria desejado trocar o próprio filho por outro, aparentemente mais comportado ou bem sucedido? Quem nunca pensou que não ia ter condições de sustentar, educar, colocar limites, ensinar a se defender? Quem nunca ponderou a idéia de desistir, como se fosse possível, da empreitada em curso da paternidade?

Ser pai não anda fácil. Antes criavam-se muitos e uns davam certo, outros nem tanto. Hoje é um ou dois e nada pode dar errado, poucas balas pedem tiros certeiros. Pai e mãe são julgados pelos resultados: diga como são teus filhos e te direi quem és! Essa pressão, aliada ao tratamento de reis que têm os pequenos de hoje, faz muitos recuar. As taxas de natalidade baixam em países do primeiro mundo, o que sempre nos indica as tendências de por onde o futuro vai andar. Recente pesquisa apontou que 15% dos brasileiros que tiveram filhos, se pudessem voltariam atrás.

Apesar disso o mito segue igual: ser pai é ultra bom, insinua-se que é a única atitude madura a tomar, e não deve haver dúvidas de que será paixão à primeira vista, e você vai amar seus filhos incondicionalmente. Se for mulher então nem se fala: não se é "verdadeiramente feminina" sem filhos. Abortar é crime! Falar de aborto mexe com o fundamento de todo esse edifício de crenças.

Em primeiro lugar cabe perguntar: por que esse discurso social tão forte, cercando a maternidade e a paternidade de certezas que elas nunca têm? Impossível saber se ter filhos é a melhor coisa a fazer, se é a atitude mais nobre a se tomar, e se existe garantias de que o amor vai conduzir as coisas para o bom caminho.

Açodados por tanto romantismo, muitos embarcam nessa viagem só de ida sem estarem preparados. São ainda demasiado filhos para tornarem-se pais. Quando caem na real alguns superam, e fazem disso uma razão a mais para viver. Outros deprimem e resignam-se, fazem do seu filho um castigo e socializam essa sina com todos em volta. E há aqueles que são incuravelmente frágeis, imaturos e ou narcisistas para suportar esse encargo recebido. Pois não há como dourar a pílula, é um fardo vitalício, por mais que consigamos extrair disso experiências interessantes, desafios instigantes, muito afeto e até aventuras! Mesmo quando é bom, é uma responsabilidade e uma trabalheira assustadora. Não admira que existam aqueles que tentem evitá-la ou postergá-la.

Ter um filho é assinar um contrato imenso, escrito em letras ilegíveis, em palavrório incompreensível, do tipo que se a gente lesse jamais teria coragem de encarar. Claro que vamos amadurecendo com a experiência, qualificando-nos a posteriori, de tal modo em que ficamos prontos para criar o primeiro filho só após ter o segundo, para administrar o conflito entre os dois primeiros, só quando eles já resolveram isso por conta, e se um terceiro houver, já estaremos anestesiados, nem lembraremos das questões anteriores. Portanto, a sensação de impotência é intrínseca à tarefa.

Além disso, há outra contradição inerente à parentalidade: como é que ela é fruto de um amor, sua encarnação, na mesma medida em que se torna seu maior obstáculo? Depois de iniciada, um homem e uma mulher precisarão conhecer-se novamente e re-pactuar a relação. Nem sempre um amado é o pai que ela queria para os filhos, nem sempre ele gostaria de compartilhar o leito com uma mulher que é mãe. Muitos problemas ocorrem porque a criança é incompatível com o amor do casal que a gerou. E há um agravante quando ela representa um resto de amor antigo, do tipo que sempre deixas pendências das quais o filho restante é uma triste lembrança. E quando o ciúme do novo consorte não suporta esse resto ambulante?

Ainda, um filho pode ser fruto de um deslize, um aborto que não se teve coragem de fazer, pode ser uma tentativa de colocar alguém na casa dos próprios pais para que ocupe nosso lugar e estes nos deixem partir. Neste caso, e se a criatura não se resignar a esse papel de irmão de mentirinha e insistir em fazer-nos pais?

Para todos esses casos e tantos outros, a fantasia providencia soluções como as do pai e da madrasta de João e Maria: levar as crianças incômodas para a floresta e esquecê-las lá a mercê das feras. O problema é quando as pessoas, curtas de fantasia e de capacidade de escutar suas ruminações, seus rosnados interiores, passam ao ato: matam, maltratam, abandonam. Aí acabou a brincadeira, é preciso exorcizar, lavar as mãos, latir e latir, para que ninguém pense jamais que nós poderíamos um dia também chegar a morder.

DIANA LICHTENSTEIN CORSO E MÁRIO CORSO | Psicanalistas, membros da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, autores do livro Fadas no Divã

quinta-feira, 24 de abril de 2008

O trauma do amor

Todo amor busca compensar um desastre amoroso passado; somos feridos antes da batalha

NESTES DIAS, reencontrei Gérard Pommier, um colega e amigo que não via há quase 15 anos. Ele está de passagem pelo Brasil, palestrando.
Num fim de tarde, sentados na minha cozinha, colocamos a conversa em dia: filhos, trabalho e, claro, divórcios, separações e novos amores.
No capítulo "divórcios e separações", prevaleceu o tema (tragicômico) das indenizações financeiras. Como era de se esperar numa conversa entre homens, constatamos a curiosa contradição entre a reivindicação feminina de autonomia e, por outro lado, o fato de que muitas mulheres, ao se separarem, exigem uma reparação monetária.
Por estarmos ambos sóbrios, não discutimos o fundamento das pensões alimentícias para as crianças nem o da retribuição pelos anos em que uma mulher pode ter renunciado à sua vida profissional para se dedicar ao lar. Apenas estranhávamos o tipo de demanda raivosa que dá a impressão de pedir indenização pelo amor perdido.
Nos homens como nas mulheres, os amores que acabam deixam a sensação de um dano quase físico, material ("retiraram uma parte de mim") -um dano, portanto, que poderia ser compensado. Deve ser por isso que tanto os homens quanto as mulheres, às vezes, "curam" as dores de uma separação com aquisições extravagantes. "Ela me deixou?
Compro uma moto."
Mas as mulheres, freqüentemente, preferem que a reparação do dano seja o ônus do ex-parceiro. Mesmo quando a iniciativa da separação foi da própria mulher (ou compartilhada por ela) e não houve "infidelidade" do lado do homem, as mulheres tendem a viver a separação como uma traição, como uma crueldade que lhes foi feita, uma sacanagem.
Há como explicar essa diferença, mas isso, hoje, não vem ao caso. O fato é que a conversa com Pommier foi interrompida porque eu fui assistir ao filme de Wong Kar-wai, "Um Beijo Roubado", que acaba de estrear. Pommier, que já tinha visto o filme na França, prometeu que ele tinha a maior relação com nossa conversa daquela noite.
De fato, o filme de Kar-wai é uma esplêndida elegia sobre o trauma amoroso. Os quatro personagens principais são todos inválidos da guerra das paixões. Ficam num canto lambendo suas feridas ou saem pelo mundo afora para esquecê-las ou cicatrizá-las, mas, de qualquer forma, para eles, um novo amor é a tentativa de compensar um desastre passado, que os deixou sem chaves para as portas da vida.
Para um psicanalista, é um prato cheio: confirma-se, indiretamente, a idéia de que nos apaixonamos pelos outros porque não nos foi permitido ficar com a mãe e ou com o pai. Todo amor corrigiria uma grande decepção amorosa, forçada e originária, todo amor seria um paliativo contra as dores da renúncia a nossas paixões edipianas. Ou seja, atrás de nossa vida amorosa, sempre há um dano inicial. "Será que alguém paga um dia?", diriam as mulheres evocadas na conversa com Pommier.
Tudo bem, mas o complexo de Édipo, que se tornou sabedoria psicológica comum, não deixa de ser um mistério. Por que seríamos saudosos de uma única relação que nos foi proibida para que todas as outras fossem permitidas? Por que seríamos para sempre queixosos de uma única perda que nos libertou e nos soltou pelo mundo?
Mais misterioso: é raro que a lembrança de nossos primeiros afetos amorosos (com a mãe, especialmente) seja a de um idílio; em geral, ela vem junto com a queixa de termos sido, de uma maneira ou de outra, preteridos ou mesmo traídos. Talvez essa lembrança queixosa seja influenciada pelo que vem depois: a gente veria nossa primeira infância pelo prisma das dores da autonomia, do crescimento e da separação.
Mas talvez haja algo mais, algo que nos torna feridos antes da batalha, queixosos de ter sofrido um dano antes de qualquer amor, inclusive antes daquela primeira relação, miticamente feliz, com a mãe. Talvez a sensação de que fomos traídos, e não nos foi dado o que queríamos e esperávamos anteceda o amor e suas frustrações. Talvez todos os amores, inclusive o edipiano, sejam apenas compensações frustrantes por um dano que, aliás, inevitavelmente, eles renovam. Mas de que dano estou falando?
De qual sensação originária de que o mundo sempre nos priva porque nunca responde à altura de nossos pedidos?
A resposta seria complicada e incerta, mas há um atalho. Pergunte para qualquer jovem mãe esbaforida: "Afinal, o que quer um bebê?".


CONTARDO CALLIGARIS ccalligari@uol.com.br

São Paulo, quinta-feira, 17 de abril de 2008



segunda-feira, 21 de abril de 2008

Quando um brinquedo dura mais que um Natal...

Toda a movimentação que assistimos no Natal em relação aos presentes nos remete a pensar sobre o lugar da fantasia na constituição psíquica de uma criança. O natal se torna uma promessa de participar de um mundo mágico, as crianças são grandes especialistas em mistérios, enigmas e em aventuras num mundo de faz – de - conta.
A perspectiva de ganhar presentes leva a criança a sonhar o tão esperado momento da chegada do papai Noel. Mas a festa também acontece na imaginação dos adultos, são eles que tomam a iniciativa, seja prometendo recompensa por bom comportamento ou punição quando a criança não responde aos seus ideais. Portanto, não é somente as crianças que depositam expectativas na figura do papai Noel. Assim, o papai Noel é uma figura mítica que permanece como lembrança na infância de todos e que se atualiza a cada Natal.
Com a psicanálise compreendemos que os conflitos e desejos de nossa infância não se perdem jamais. O que seria do adulto sem as suas crenças infantis?
O presente tem a marca da realidade num mundo de fantasias construído para organizar de forma simbólica as vivencias de conflitos e desamparos. A fantasia tem a função de organizar o mundo em que a criança vive.
Segundo Freud, a criança brinca para criar e descobrir, ou seja, brinca para poder elaborar perdas, para encenar o que ainda não compreende da sua vida, brinca para simbolizar.
Então, a criança necessita da brincadeira para apoiar sua inscrição no desejo. O brinquedo assim, se transforma em outra coisa com o investimento imaginário e simbólico que a criança consegue fazer. Através do brincar pode elaborar a distância entre a possibilidade e a insuficiência no desejo de ser grande.
Dessa forma os pais possibilitando um tempo para seu filho brincar assinalam um valor as suas produções. Então, um brinquedo cumpre a sua função quando ele é manipulado, encenado num teatro muito particular, “brincar para a criança e fantasiar para o adolescente são recursos de elaboração pelos quais o sujeito entra em contato com seus ideais e conflitos de uma forma leve e sem maiores compromissos (...) na brincadeira, está se vivendo a personagem de uma trama, é como participar de uma ficção da qual se é autor e ator, é uma fantasia vivida, mas com a possibilidade de sair da cena”¹.
Os pais perguntam aos psicólogos como fazer certo, pois a cada filho precisam recomeçar. E tudo o que já sabiam parece se modificar a cada dia. Há uma grande idealização da infância no nosso meio, mas as crianças em alguma medida conseguem suportar um adulto ocupado, que faz o que pode para tentar manter a sua atenção na criança, mas nem sempre consegue, que sente culpa logo em seguida, que procura consertar o tempo todo ás decisões atrapalhadas que toma, acreditando estar fazendo o melhor para que a criança não tenha sofrimentos. Como vemos a criança tem uma compreensão do mundo muito particular e resolve a sua maneira os impasses da vida, pois é trabalhoso crescer.
Freud nos diz que a palavra está sempre em jogo, e a criança pode nos responder através dos atos do seu brincar as perguntas que lhe fazemos. É preciso suportar um brincar descomprometido de regras, pois a criança não vive num mundo pacifico, sem conflitos, ela quer o prazer que o mistério proporciona. Por isso que o presente e as historias de Natal nunca perdem seu lugar. Os brinquedos podem ficar para trás, as brincadeiras se modificam, mas as vivencias não estarão perdidas, pois sempre retornam e dão sentido à nossa vida.
¹ Fadas no Divã Psicanálise nas historias infantis, Artmed, 2006

* T. Guberovich
Texto publicado na Revista Afinal - Blog do Gerson/ dezembro 2007

Nadja


Este fragmento chamou minha atençao na leitura do livro!

"Quem sou? Se excepcionalmente recorresse a um adágio, tudo nao se resumiria em saber "com quem ando"?Devo confessar que essa expressao me perturba um pouco, pois tende a estabelecer entre mim e certos seres relaçoes mais singulares, menos evitáveis, mais perturbadoras do que poderia imaginar. Diz muito mais do que quer dizer, me faz desempenhar em vida o papel de um fantasma, alude evidentemente ao que eu deveria deixar de ser para ser quem sou. Tomando-a de forma um tanto abusiva nesta acepçao, dá-me a entender que tudo o que considero manifestaçoes objetivas de minha existência, manifestaçoes mais ou menos deliberadas, nao passa, nos limites desta vida, de uma atividade cujo verdadeiro campo permanece inteiramente desconhecido para mim. É possivel que minha vida nao passe de uma imagem que esteja condenado a voltar sobre meus passos, pensando, ao contrário que avanço, tentando reconhecer o que de fato deveria reconhecer, aprender uma escassa parcela do que esqueci. Alem de toda a espécie de singularidade que reconheço em mim, de afinidades que sinto, de atraçoes que sofro, de acontecimentos que me ocorram e ocorram somente a mim, alem da quantidade de movimentos que me vejo fazer, de emoçoes que somente eu experimento, esforço-me, em relaçao aos outros homens, por saber que consiste, ou pelo menos a que se deve, essa minha diferenciaçao. Nao será à medida exata que eu tomar consciencia dessa diferenciaçao que poderei ficar sabendo o que, entre todos os demais, vim fazer neste mundo, e qual a mensagem ímpar de que sou portador, a ponto de só minha cabeça poder responder por meu destino?De minha parte, continuarei a habitar minha casa de vidro, de onde se pode ver a todo instante quem vem me visitar, onde tudo o que está pendurado no teto ou nas paredes se sustém como que por encanto, onde repouso à noite, sobre um leito de vidro com lençois de vidro, onde quem sou me aparecerá cedo ou tarde, gravado em diamante" André Breton

Memórias de minhas putas tristes

"Descobri que minha obsessão por cada coisa em seu lugar, cada assunto em seu tempo, cada palavra em seu estilo, não era o prêmio merecido de uma mente em ordem, mas, pelo contrário, todo um sistema de simulação inventado por mim para ocultar a desordem da minha natureza। Descobri que não sou disciplinado por virtude, e sim como reação contra a minha negligência; que pareço generoso para encobrir minha mesquinhez, que me faço passar por prudente quando na verdade sou desconfiado e sempre penso o pior, que sou conciliador para não sucumbir às minhas cóleras reprimidas, que só ´sou pontual para que niguém saiba como pouco me importa o tempo alheio. Descobri, enfim, que o amor não é um estado de alma e sim um signo do zodíaco".O velho jornalista de "Memória de minhas putas tristes".
Gabriel Garcia Marques

O segredo da vida de um casal!


Receita do amor que dura: amar o outro não apesar de sua diferença, mas por ele ser diferente.
EM GERAL , na literatura, no cinema e nas nossa fantasias, as histórias de amor acabam quando os amantes se juntam (é o modelo Cinderela) ou, então, quando a união esbarra num obstáculo intransponível (é o modelo Romeu e Julieta). No modelo Cinderela, o narrador nos deixa sonhando com um "viveram felizes para sempre", que seria a "óbvia" conseqüência da paixão. No modelo Romeu e Julieta, a felicidade que os amantes teriam conhecido, se tivessem podido se juntar, é uma hipótese indiscutível. O destino adverso que separou os amantes (ou os juntou na morte) perderia seu valor trágico se perguntássemos: será que Romeu e Julieta continuariam se amando com afinco se, um dia, conseguissem deitar-se juntos sem que Romeu tivesse que escalar a casa de Julieta até o famoso balcão? Ou se, em vez de enfrentar a oposição letal de suas ascendências, eles passassem os domingos em espantosos churrascos de família? Talvez as histórias de amor que acabam mal nos fascinem porque, nelas, a dificuldade do amor se apresenta disfarçada. A luta trágica contra o mundo que se opõe à felicidade dos amantes pode ser uma metáfora gloriosa da dificuldade, tragicômica e inglória, da vida conjugal. O casal que dura no tempo, em regra, não é tema para uma história de amor, mas para farsa ou vaudeville -às vezes, para conto de terror, à la "Dormindo com o Inimigo". Durante décadas, Calvin Trillin escreveu uma narrativa de sua vida de casal, na revista "New Yorker" e em alguns livros (por exemplo, "Travels with Alice", viajando com Alice, de 1989, e "Alice, Let's Eat", Alice, vamos para a mesa, de 1978). Nesses escritos, que são só uma parte de sua produção, Trillin compunha com sua mulher, Alice, uma dobradinha humorística, em que Calvin era o avoado, o feio e o desajeitado, e Alice encarnava, ao mesmo tempo, a beleza, a graça e a sabedoria concreta de vida. À primeira vista, isso confirma a regra: a vida de casal é um tema cômico. Mas as crônicas de Trillin eram delicadas e tocantes: engraçadas, mas nunca grotescas. Trillin não zombava da dificuldade da vida de casal: ele nos divertia celebrando a alegria do casamento. Qual era seu segredo? Pois bem, Alice, com quem Trillin se casou em 1965, morreu em 2001. Trillin escreveu "Sobre Alice", que acaba de ser publicado pela Globo. Esse pequeno e tocante texto de despedida desvenda o segredo de um amor e de uma convivência felizes, que duraram 35 anos. O segredo é o seguinte: Calvin e Alice, as personagens das crônicas, não eram artifícios literários, eram os próprios. A oposição entre os dois foi, efetivamente, o jeito especial que eles inventaram para conviver e prolongar o amor na convivência. Considere esta citação de um texto anterior, que aparece no começo de "Sobre Alice": "Minha mulher, Alice, tem a estranha propensão de limitar nossa família a três refeições por dia". A graça está no fato de que a "propensão" de Alice não é extravagante, mas é contemplada por Calvin como se fosse um hábito exótico. Alice é situada e mantida numa alteridade rigorosa, em que é impossível distinguir qualidades e defeitos: Calvin a ama e admira como a gente contempla, fascinado, uma espécie desconhecida num documentário do Discovery Channel. Se amo e admiro o outro por ele ser diferente de mim (e não apesar de ele ser diferente de mim), não posso considerar que minha maneira de ser seja a única certa. Se Calvin acha extraordinário que Alice acredite na virtude de três refeições diárias, ele pode continuar petiscando o dia todo, mas seu hábito lhe parecerá, no fundo, tão estranho quanto o de Alice. Com isso, Calvin e Alice transformaram sua vida de casal numa aventura fascinante: a aventura de sempre descobrir o outro, cuja diferença inesperada nos dá, de brinde, a certeza de que nossa obstinada maneira de ser, nossos jeitos e nossa neurose não precisam ser uma norma universal, nem mesmo a norma do casal. Há quem diga que o parceiro ideal é aquele que nos faz rir. Trillin completou a fórmula: Alice era quem conseguia fazê-lo rir dele mesmo. Com isso, ele descobriu a receita do amor que dura.
CONTARDO CALLIGARIS
ccalligari@uol.com.br

Acídia, Depressão & Cia. Alma e corpo.



Ao caracterizar a acídia como uma tristeza (e, para Gregório, a própria tristeza era o pecado capital), abrem-se inúmeras dimensões antropológicas, com interfaces nem sempre claras e a questão adquire uma imensa complexidade: a tristeza pode (ou não) ser pecado, doença, estado de ânimo, atitude existencial..., ou combinações desses fatores.
Só com enunciar essas dimensões, já se mostra imediatamente a extrema atualidade de nosso tema. Por exemplo, Andrew Solomon, autor de um dos mais importantes livros sobre a "doença de nosso tempo", a depressão, incluiu a velha acídia no próprio título de sua obra: "O demônio do meio-dia - uma anatomia da depressão"[20] . O "demônio do meio-dia" é o da acídia[21] .
Infelizmente, nesse livro - tão oportuno e acertado na análise da depressão - o autor incorre em uma imprecisão ao examinar a obra de Tomás de Aquino, dando a impressão de que Tomás endossa teses que, na verdade, são o avesso das afirmadas realmente pelo Aquinate. E, por se tratar do núcleo da antropologia de Tomás, vale a pena que examinemos o problema. Erroneamente diz Solomon:
Tomás de Aquino, cuja teoria de corpo e alma colocava a alma hierarquicamente acima do corpo, concluía que a alma não poderia ser sujeita às doenças corporais. Contudo, uma vez que a alma estava abaixo do divino, era sujeita à intervenção de Deus ou de Satã. Dentro desse contexto uma doença tinha que ser do corpo ouda alma, e a melancolia estava assinalada para a alma[22] .
Certamente, a descrição que Tomás faz da acídia, das manifestações do vício capital da acídia, aproxima-se muito da descrição que podemos fazer hoje da doença da depressão. Mas isto não significa que Tomás não possa atribuir a tristeza depressiva a causas naturais, alheias ao âmbito moral: quando o Aquinate fala da acídia, de suas "filhas" e manifestações, está focando a dimensão que mais lhe interessa como teólogo: a da tristeza moralmente culpável[23] . Nessa mesma linha, seria interessante, para nós hoje, considerarmos também - para além da realidade da depressão como doença (hoje em dia, mais do que evidente para nós) -, que pode haver uma acídia, uma dimensão moral em alguns casos de tristezas depressivas.
De resto, nada mais alheio ao pensamento de Tomás do que uma incomunicação entre espírito e matéria. O que Tomás, sim, afirma é o homem total, com a intrínseca união espírito-matéria, pois a alma, para o Aquinate é forma, ordenada para a intrínseca união com a matéria.
Nesse sentido, comparemos as afirmações de Solomon com o que realmente diz Santo Tomás, precisamente em relação ao nosso tema, a tristeza, os remédios para a tristeza, que reside na alma. Tomás enfrenta esta questão na Suma Teológica I-II 38 e no artigo 5 chega a recomendar banho e sono como remédios contra a tristeza! Pois, diz o Aquinate, tudo aquilo que reconduz a natureza corporal a seu devido estado, tudo aquilo que causa prazer é remédio contra a tristeza. Tomás destrói assim a objeção "espiritualista":
Objeção 1.: Parece que sono e banho não mitigam a tristeza. Pois a tristeza reside na alma; enquanto banho e sono dizem respeito ao corpo, portanto, não teriam poder de mitigar a tristeza.
Resposta à objeção1: Sentir a devida disposição do corpo causa prazer e, portanto, mitiga a tristeza[24] .
De resto, para os remédios contra a tristeza, Tomás não fala de Deus nem de Satã, mas sim recomenda: qualquer tipo de prazer, as lágrimas, a solidariedade dos amigos, a contemplação da verdade, banho e sono. E ainda sobre a interação alma-corpo, Tomás afirma em I-II, 37, 4:
A tristeza é, entre todas as paixões da alma, a que mais causa dano ao corpo [...] E como a alma move naturalmente o corpo, uma mudança espiritual na alma é naturalmente causa de mudanças no corpo.

Jean LauandProf. Titular FEUSP

sábado, 19 de abril de 2008

Carta a D. história de um amor

  • "Era isso: você havia me dado a possiblidade de escapar de mim mesmo e de me instalar num outro lugar, do qual você me trouxera a notícia. Com você, eu podia deixar de férias a minha realidade. Você era o complemento da irrealização do real, estando eu mesmo nele compreendido desde sete ou oito anos antes, através da atividade de escrever. Você era quem punha entre parênteses esse mundo ameaçador, no qual eu era um refugiado de existência ilegítima, cujo futuro nunca ultrapassava três meses. Eu não tinha a menor vontade de voltar à terra. Encontrava refúgio numa experiência maravilhosa e nao aceitava que ela fosse alcançada pela realidade. Eu recusava, no fundo de mim mesmo, aquilo que, na idéia e na realidade do casamento, implica esse retorno ao real. Até onde consigo lembrar, eu sempre procurei nao existir. Você deve ter trabalhado anos a fio até me fazer assumir minha existência. E esse trabalho, estou certo disso, nunca se completou". (Carta a D. p. 20)


UM GRANDE AMOR

  • Eu já tinha pensado em escrever sobre o grande amor entre o judeu austríaco André Gorz e a inglesa Dorine Kair quando li a bela coluna de sábado escrita por Cláudia Laitano. Confesso que quase desisti. Depois, pensando melhor, achei que poderia dizer um pouco mais sobre este casamento que durou quase 60 anos sem nunca esmorecer literalmente até a morte de ambos, em setembro de 2007. Dorine sofria de uma doença degenerativa, e o casal, militantes de esquerda, fez um pacto de morte. O suicídio entre amantes não é uma novidade na história. O novo nesta bela relação entre Gorz e Dorine é a carta que ele deixou para ela e que constituiu a sua última obra, Carta a D., lançada pela Cosac Naif. Procurei nas livrarias e não encontrei. Peguei emprestado e devorei em poucas horas.


    O racional escritor marxista e existencialista, amigo e colaborador de Jean-Paul Sartre, diretor da revista Tempos Modernos, revela-se um homem terno e capaz de mostrar abertamente os seus sentimentos, o seu romantismo em relação à mulher de toda a sua vida. É um depoimento extremamente importante nestes tempos de banalidade em que tudo é transitório, fugaz, imediato. Gorz abre uma relação permanente, duradoura, permeada de ternura, tanta ternura, que não foi abalada nem pela velhice, nem pela consciente perspectiva da morte, escolhida lucidamente por ambos. Trata-se de uma pequena grande obra que é capaz de calar fundo no íntimo de todas as pessoas que a lerem. E no meio do texto, belíssimo, o velho existencialista volta a se revelar: "Eu queria acreditar que nós tínhamos tudo em comum, mas você estava sozinha em sua aflição". Mas esta solidão de Dorine em sua dor, não era irreversível. A morte era capaz de transcendê-la, principalmente se fosse compartilhada por Gorz, uma morte escolhida e assumida por ambos. E o célebre autor de Estratégia Operária e Neocapitalismo e Socialismo Difícil, o militante de esquerda, o desbravador das lutas ecológicas não vacilou. A vida sem Dorine não tinha qualquer sentido para ele e para ela a própria vida era uma degeneração cotidiana e um sofrimento permanente. A morte, então, surge como uma saída. Não uma fuga da vida, mas como uma ação consciente que renova, no derradeiro instante, o amor de toda uma existência. O último ato de André Gorz e Dorine Keir acaba sendo um notável exemplo de vida.

  • Texto de Luiz Pilla Vares publicado no jornal Zero Hora ( Voltar para a ediçao ) em 10 de abril de 2008

AOS TÍMIDOS...

Me identifiquei com esse texto do Luis FernandoVerissimo, então aqui está para compartilhar com os leitores do meu blog.


Como um tímido veterano, posso dar alguns conselhos aos que estão recém descobrindo o martírio de enfrentar este terror, os outros, e a obrigação de se fazer ouvir, ter amigos, namorar, procriar e, enfim, viver, quando o que preferia era ficar quieto em casa. Ou, de preferência, no útero. Para começar, algumas coisas que não funcionam. Tentei todas e não deram certo. Decorar frase, por exemplo. Já fui com uma frase pronta para impressionar a menina e na hora saiu "Teus marilus verdes são como dois olhos, lagoa". Também resista à tentação de assumir um ar superior e dar a impressão de que você não é tímido, é misterioso. Eu sou do tempo em que a gente usava chaveiro com correntinha (além de tope e topete, tope de gravata enorme e topete duro de Gumex) e ficava girando a correntinha no dedo enquanto examinava as garotas na saída das matinés (eu sou do tempo das saídas de matinés). Um dia deu certo, a garota veio falar comigo, ou ver de perto o que mantinha o topete em pé, foi atingida pela hélice da correntinha e saiu furiosa. Melhor, porque eu não tinha nenhuma fala pronta, o que dirá misteriosa, que correspondesse à pose. Evite manobras calhordas, como identificar alguém tão tímido quanto você no grupo, e quando, por sacanagem, lhe pedirem um discurso, passar a palavra para ele. O mínimo que um tímido espera de outro é solidariedade. E não há momento mais temido na vida de um tímido do que quando lhe passam a palavra. Tente se convencer de que você não é o alvo de todos os olhares e de todas as expectativas de vexame quando entra em qualquer recinto. Porque no fundo, a timidez é uma forma extrema de vaidade, pois é a certeza de que, onde o tímido estiver, ele é o centro das atenções, o que torna quase inevitável que errará a cadeira e sentará no chão, ou no colo da anfitriã. Convença-se, o mundo não está só esperando para ver qual é a próxima que você vai aprontar. E mire-se no meu exemplo. Depois que aposentei a correntinha e (suspiro) perdi o topete, namorei, procriei, fiz amigos, vivi e hoje até faço palestras, ou coisas parecidas. Mesmo com o secreto e permanente desejo, é verdade, de não estar ali, estar quieto em casa.

Texto publicado no jornal ZeroHora- 27 de março de 2008 Voltar para a ediçao do dia