sexta-feira, 30 de maio de 2008

terça-feira, 27 de maio de 2008

A FORÇA DAS PALAVRAS DE UM PAI




Nossos pais é que são uma incógnita para nós, é neles que buscamos, nem que seja uma migalha de discurso, que empreste uma missão para a nem sempre fácil tarefa de viver. O livro "O Conto do Amor", de Contardo Calligaris, é sobre essa busca

Contardo Calligaris estréia na ficção: lançou, pela Companhia das Letras, O Conto do Amor (128 pág., R$34,00). Já estamos acostumados aos seus artigos semanais na Folha de S. Paulo, onde consegue, em tão exíguo espaço, a proeza de fazer um pequeno ensaio. De qualquer assunto, sempre extrai um novo sentido, nos surpreende com uma ou duas voltas a mais no raciocínio que já temos.

Na largada, este livro lembra a arquitetura de Quase Memória de Carlos Heitor Cony. Naquele, o filho recebe uma caixa que só poderia ter sido ser mandada pelo pai, mas como, se o pai está morto? A partir desse mote, abrem-se inúmeras lembranças sobre quem foi esse homem, e que marcas deixou no filho. Já no livro de Calligaris, os últimos dias de vida do velho médico dão ocasião a uma das raras conversas que ele tem com o filho, a personagem Carlo Antonini. Só que o pai, talvez movido pela senilidade, profere um aparente disparate: ele acredita ter sido, numa outra vida, um auxiliar do pintor renascentista Sodoma. Após a morte, restam os diários do pai e esse fiapo de conversa delirante. Desconfiando de que seja uma afirmação insana, mas acreditando que ali se esconda alguma verdade, Antonini mergulha no passado de seu pai.

Carlo e seu pai são como a maioria de nós, de longe se amam, de perto se desencontram. A expressão do amor de um filho pelo pai, e do pai pelo filho, é uma das questões abertas de nosso tempo. Nessas relações, o silêncio impera, sempre parece ser maior do que quaisquer palavras. As perguntas chegam tarde, as explicações não colam. Quando algo finalmente está sendo dito, julgamos ser tarde, ou então cedo demais. É um amor que não acha encaixe, não sendo, apesar disso, menos intenso e consistente, apenas é meio desajeitado, e raramente encontra uma via fácil, direta.

Casamento e mortalha, no céu se talha. Esse é o dito que tenta neutralizar o fato de que somos fruto de um acaso. Nem os céus nem ninguém tinham garantias de que nossos pais se encontrariam, se amariam (na melhor das hipóteses) e que disso resultaríamos nós. Infelizmente, tampouco são os céus que estão cuidando para que nossa existência dure o tempo necessário para os seus desígnios, por isso, convém olhar quando se atravessa a rua. Essa expressão visa inverter a ausência de sentido da existência e da finalidade de cada um de nós. Existimos somente pelo acaso que reuniu nossos pais. Por causa disso que (mesmo sabendo dessa falta de razão), nos impelimos a investigar o que foi que os uniu, a descobrir quem eles foram, como foi que se amaram, em que outras tramas amorosas se meteram, o que lhes faltou viver...

Nessas frestas procuramos saber algo sobre nós e, não raro, encontramos, pois as pistas estão ali. Não queremos saber o que sempre nos disseram que eles eram, e o que queriam que fôssemos, indagamos o subtexto, os pequenos ou grandes segredos que toda família tem. Esse tipo de investigação geralmente ocorre após a morte dos pais, não necessariamente a morte física, mas sua progressiva diminuição no papel real da nossa vida. Um filho está interessado exatamente no que foi esquecido, silenciado, no que ficou pendente, ou que causou arrependimento, saudade, mágoa, ou ainda, um secreto orgulho nos seus pais. É quando eles de fato morrem que vamos ousar as maiores perguntas, aquelas que o pai não iria responder, porque, na verdade, é a si mesmo que o filho indaga: o que farei com esta herança de uma vida que ainda pulsa em mim, mas que se foi?

Essas perguntas sobre os pais nos movem, mas, em geral, nos incitam apenas a uma jornada interior. No livro de Calligaris, ao contrário, essa busca ocorre do lado de fora, como uma investigação real, cheia de andanças e descaminhos. Tal como Carlo Antonini, por melhor que um pai tenha sido, queremos encontrar seus furos, não cessamos de lhe atribuir algum mistério, algo no qual transcenda a vida que testemunhamos. Ou então, supomos que, antes do nosso nascimento, algo de muito empolgante tenha acontecido, afinal, nada como ser herdeiro de alguém interessante para valorizar nossas origens, das quais estamos sempre meio queixosos, não importa o que tenham nos oferecido.

É atraente a idéia de que nossa existência guarde um enigma, como se fôssemos uma mensagem cifrada lançada pelos pais para o futuro, tendo um destino que um dia aconteceria e revelaria nosso sentido. Assim, a vida de cada um parece ter uma razão que deve ser indagada aos que a inauguraram. Na verdade, é o inverso: nossos pais é que são uma incógnita para nós, é neles que buscamos, nem que seja uma migalha de discurso que empreste uma missão para a nem sempre fácil tarefa de viver. O livro é sobre essa busca, Antonini decifra e encontra uma nova faceta do pai. Bem, lapidar um pai é uma das tarefas da existência, uma das razões de uma análise, um dos trabalhos da ficção, e é sempre bom ver alguém se divertindo com isso. Mas o livro traz muito mais, confira.

MÁRIO CORSO | Psicanalista

24 de maio de 2008 | N° 15611AlertaVoltar para a edição de hoje

segunda-feira, 26 de maio de 2008

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Entrevista: Charles Melman - A psicanálise nao promete a felicidade

Le Figaro


Charles Melman, colaborador de Jacques Lacan, lança seu livro no Rio de Janeiro


O psicanalista francês Charles Melman foi um dos colaboradores mais próximos de Jacques Lacan (1901-1981), o principal herdeiro de Sigmund Freud na França. Melman chegou ao Rio de Janeiro nesta quinta-feira, dia 24, e participa na manhã de sexta do seminário "E o que é que ele quer, o psicanalista?", realizado no Hotel Glória. No final da tarde autografa seu novo livro, A Prática Psicanalítica Hoje. Antes de viajar, concedeu por telefone a seguinte entrevista ao repórter Ronaldo Soares, da sucursal carioca de VEJA.
Veja — Por que a psicanálise vem perdendo terreno para terapias que prometem resultados imediatos?
Melman — Porque ela não busca nenhum tipo de cura, não se propõe a isso. Está, portanto, na contramão da medicina, cuja história é rica em experiências baseadas na cura, com métodos variados. Alguns desses métodos, até pelos efeitos de sugestão, não são ineficazes. Mas é preciso saber se nós preferimos os métodos fundados sobre a sugestão ou se consideramos que é melhor privilegiar a livre atitude e o pensamento de cada pessoa, e assim estimular nela sua autonomia de julgamento. Nos períodos de crise moral, como o atual, proliferam os métodos que prometem a cura. Aos que escolhem esse caminho, só me resta desejar boa sorte.

"A última contribuição realmente original
ao pensamento de Freud foi dada por Lacan, que já morreu há quase
30 anos"



Veja —
Além de espaço, a psicanálise perdeu prestígio?
Melman — Ela perdeu prestígio junto aos intelectuais, porque os que se inspiram em Freud não conseguiram dar prosseguimento de forma válida e original ao trabalho dele. Desse vazio surge a impressão de que Freud está ultrapassado. A última contribuição realmente original ao pensamento de Freud foi dada por Lacan, que já morreu há quase 30 anos (em 1981). Ele deixou ainda muito por fazer para que possamos dar conta das mudanças que estamos presenciando.

Veja — O senhor concorda que há uma excessiva utilização de psicotrópicos atualmente?
Melman — A saúde hoje é algo que se calcula em bilhões de dólares. É compreensível e até inevitável que os laboratórios estimulem o alto consumo de medicamentos como os antidepressivos. A França, por exemplo, tornou-se um grande consumidor desses produtos justamente em virtude das ações que os representantes dos laboratórios desenvolvem junto aos consultórios médicos. A questão é que a hiper-medicalização contém muito mais riscos do que vantagens. No caso das crianças, por exemplo, isso fica evidente. Sobretudo no que diz respeito ao uso precoce, recomendado pelos laboratórios, de neurolépticos (inibidores das funções psicomotoras). Esses medicamentos vêm sendo usados nas crianças para tratar distúrbios de personalidade ou para combater problemas como insônia ou falta de apetite, entre outras coisas. Trata-se de algo absolutamente condenável, com implicações nefastas tanto sobre o desenvolvimento quanto sobre o estado físico da criança. Outra conseqüência grave da hiper-medicalização é a predisposição do indivíduo para desenvolver dependência química. Primeiro, de remédios. Mas em seguida, possivelmente, de produtos fora do mercado legal. Com isso, poderemos chegar ao ponto em que a dependência vai parecer uma situação absolutamente normal, porque em muitos casos terá começado na infância.

Veja — O Prozac e as idéias de Freud podem conviver harmoniosamente?
Melman — Eles vivem juntos. Às vezes de maneira harmoniosa e outras, não. No primeiro caso, devemos lembrar que Freud sempre pensou que o processo psíquico tinha um suporte neuro-hormonal. Ele esperava que a ciência descobrisse esse processo. Produtos como o Prozac agem sobre esses mecanismos neuro-hormonais e podem, então, levar a uma modificação do comportamento. Outra abordagem que mostra essa harmonia é lembrar que todos nós, assim como o próprio Freud na juventude, já sonhamos com a existência de uma panacéia de medicamento que dariam conta de todas as dores e todas as dificuldades. O Prozac se apresenta um pouco assim. Mas — e é aí que a harmonia desaparece — será que devemos apostar num procedimento que vai tratar o conjunto dos problemas psíquicos pelas drogas? Ou devemos continuar a levar em conta, primeiramente, a livre escolha do sujeito e, em segundo lugar, o próprio papel do corpo? Nesse sentido, um produto como o Prozac desencadeia um curto-circuito.

Veja — Como assim?
Melman — Dou um exemplo. Digamos que surja amanhã uma droga que, agindo sobre os centros cerebrais, produza um prazer sexual bem superior ao que se pode obter com o corpo. O que vamos preferir? Isso ou um acesso ao prazer sexual que continua a passar pelo corpo, mesmo não tendo a mesma qualidade do que pode ser proporcionado pela droga que atua diretamente sobre o cérebro? Eis o tipo de questão que se coloca com o uso do Prozac.

"Pela primeira vez a instituição familiar está desaparecendo, e as conseqüências são imprevisíveis."



Veja —
Para que serve a psicanálise nos dias de hoje, quando se pode contar com tantos recursos destinados a proporcionar bem-estar psíquico?
Melman — A psicanálise permite a você se debruçar sobre os problemas reais e incontornáveis da existência. Não sobre os problemas ligados a sua infância, ao seu meio social, às neuroses em geral que interromperam seu desenvolvimento psicológico. Ela não propõe uma cura de dificuldades que são próprias da vida social, como as ligadas à vida do casal, à relação entre pais e filhos, etc. Mas permite colocar essas dificuldades em seus devidos lugares e, ao mesmo tempo, tratá-las de outra forma. A psicanálise não terá jamais a pretensão de prometer a felicidade. Mas também não a proibirá a ninguém. Ela convidará cada um a buscar o que pode ser a felicidade para si.

Veja — Quem procura psicanálise atualmente?
Melman — Fico surpreso quando constato que, se há uma clientela interessada e engajada na psicanálise hoje em dia, é a dos jovens dos 18 aos 30 anos. Eles não procuram a psicanálise pelo fato de reprimirem seus desejos, mas principalmente porque não sabem o que desejam. É uma situação totalmente original em relação a Freud. Antes, a pessoa recorria à psicanálise porque não ousava realizar seus desejos. Hoje, principalmente no caso dos jovens, é por não saber o que desejar.

Veja — A que o senhor atribui essa mudança?
Melman — Nossos jovens foram criados em condições que promovem a busca rápida do prazer máximo e sem obrigações. É o meio social que propõe a eles essa maneira de agir em sociedade. O problema é que o tratamento dispensado ao desejo produz situações de dificuldades para os jovens. E isso os leva ao divã.

Veja — Que situações são essas?
Melman — Muitos jovens encontram dificuldade para desenvolver plenamente uma vida sexual. Parece paradoxal, porque hoje em dia o sexo é muito acessível. Mas na verdade essa facilidade leva à busca de uma vida sexual sem compromisso, que proporcione um prazer ocasional, como o cinema, a bebida ou a dança. Há aí uma mudança interessante, talvez uma tentativa de se proteger em relação ao compromisso que uma vida sexual pode evocar. A idéia é aproveitar sem se engajar, mas isso impõe uma questão: eles aproveitam plenamente? Esse é o fenômeno que chamei de nova economia psíquica. Ele é fundado sobre o princípio da busca imediata de prazer máximo, sem freios nem restrições. Esses momentos de prazer, que proporcionam uma satisfação profunda, são vividos mas não organizam a existência, nem o futuro. Ou seja, a existência é feita de uma sucessão de momentos sem nenhuma projeção no futuro, de momentos que podem desaparecer porque não terão continuidade. Isso é novo. E é o que está por trás do sucesso do mundo virtual proporcionado pela internet.

Veja — Por que o mundo virtual é tão atraente?
Melman — Porque é lúdico. É um mundo coerente com a maneira de viver dos jovens, não exige engajamento nem compromisso. Ali qualquer um pode viver uma série de vidas sucessivas sem nenhum compromisso definitivo. As pessoas querem se distanciar da realidade não porque ela seja assustadora ou sem-graça, mas porque ela implica sempre um limite. Além disso, a realidade requer uma identidade, um objetivo mais ou menos claro na vida, ao passo que esses exercícios virtuais não pressupõem nenhuma identidade, nenhuma perspectiva e ainda derrubam todos os limites, incluindo os do pudor e da polidez.

Veja — Por que atualmente os casamentos não duram? A vida a dois ficou inviável com o novo arranjo social que igualou os papéis do homem e da mulher?
Melman — Pelos padrões vigentes na sociedade atual, nos é recomendado ao longo da vida renovar os objetos dos quais nos servimos. Trocar de carro, de tapetes, de mobília, etc. As relações afetivas acabaram seguindo esse mesmo princípio, dos objetos descartáveis. Elas não resistem a esse apetite de rejuvenescimento e renovação da sociedade contemporânea.
Veja — Freud explica as famílias atuais?
Melman — Não acredito. Assistimos hoje a um acontecimento que talvez não tenha precedente na história, que é a dissolução do grupo familiar. Pela primeira vez a instituição familiar está desaparecendo, e as conseqüências são imprevisíveis. Fico surpreso que os sociólogos e antropólogos não se interessem muito por esse fenômeno. Nesse processo, podemos constatar que o papel de autoridade do pai foi definitivamente demolido. Antes, o menino tinha na figura do pai um rival e um modelo. Um rival que despertava nele o gosto pela competição, e um modelo na busca do prazer sexual. Já para a menina, tratava-se de um homem em quem ela procurava se completar. Hoje, com o declínio da figura paterna, nossos jovens podem estar menos propensos a batalhar pelo sucesso, a estabelecer um ideal de vida e até a descobrir o gosto pelo sexo. Nesse caso, a droga proporciona satisfações mais fáceis.

"Freud dizia que a força da religião reside no fato de que ela responde às perguntas que ninguém mais pode responder."



Veja —
É por isso que o consumo de drogas
não pára de crescer?

Melman — Eu diria que o apelo das drogas é tornar a existência cada vez mais virtual. Dito de outra forma, as drogas afastam as contingências da realidade. Trata-se de uma outra maneira de celebrar a virtualidade, diferente da proporcionada pela internet. As drogas permitem uma aventura psíquica, momentânea, uma trip, que supostamente não teria outras conseqüências.

Veja — Como a psicanálise vê as fobias na sociedade atual, que vive sob ameaças concretas, decorrentes de problemas ambientais e da escalada do terrorismo, por exemplo? É possível viver sem medo?
Melman — Pode parecer um paradoxo, mas isso acrescenta pimenta à existência, esse sentimento de que vivemos constantemente ameaçados. É um reencontro com os grandes medos antigos, os medos milenares, ligados a uma suposta proximidade do fim do mundo. O que é dramático é que hoje não se trata apenas de uma crença imaginária, mas sim de algo muito mais grave do que isso. Criamos armas de destruição em massa, por exemplo. Não sei se é possível nem se seria positivo acabar com o medo na sociedade. Ele, de certa forma, é um fator de proteção do sujeito, permite saber quem é o inimigo.
Veja — Como entra a religião nesse arsenal de enfrentamento das angústias humanas?
Melman — A religião sempre foi bem-sucedida em dar soluções às angústias do homem, porque consegue explicar o que é esperado de cada um. Explica o lugar da pessoa no mundo e o papel que ela tem a desempenhar. Freud dizia que a força da religião reside no fato de que ela responde às perguntas que ninguém mais pode responder. Em nome disso, muitos se sacrificam inclusive financeiramente, doando uma parte significativa de seu salário para garantir que um ser superior vai livrá-lo das ameaças trazidas por suas falhas. Isso é muito visível em um certo número de religiões novas, como as neopentecostais. Desse fenômeno, que vocês conhecem bem no Brasil, posso citar como exemplo a Igreja Universal do Reino de Deus. Fui assistir a um culto deles e fiquei muito impressionado. Estive numa catedral, acho que em Recife, produzida exatamente como a Disneylândia de Orlando, com jogos de luzes bem feitos e pastores que fazem o estilo rapazes bonitos e simpáticos. O prazer que o público tinha em cantar e dançar junto, em subir no altar para dar dinheiro, era incrível. E eram pessoas pobres, claro.

Veja — Freud marcou o pensamento no século 20. Ele sobrevive ao século 21?
Melman — Não tenho certeza. O mundo caminha na direção oposta à proposta pela psicanálise. Os remédios e, mais recentemente, os avanços da neurociência, permitem ações diretas sobre os processos cerebrais, deixando em segundo plano a subjetividade. Então a vida psíquica, e eu sou pessimista nesse aspecto, corre o risco de ser cada vez menos determinante sobre o destino de cada um. Freud chegou a escrever que um dia a ciência estaria em condições de quantificar, de isolar as substâncias responsáveis pelos eventos psíquicos. Mas os que estudam o cérebro não estão interessados em Freud.


Entrevista à Revista Veja - Ronaldo Soares






quarta-feira, 14 de maio de 2008

FRase do dia:

"A relação de um professor com os alunos é canibal: você come as carnes jovens deles, e eles comem sua experiência".
Umberto Eco

terça-feira, 13 de maio de 2008

Resenha de PAULA – ISABEL ALLENDE


Paula

Allende, Isabel. Paula. Trad.Irene Moutinho. 9° Ed. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2000. 464p.

Motivos para escrever são infinitos. Sabemos, no entanto, que, para se produzir um bom texto nem sempre é necessário uma grande história. Tampouco é necessário que as letras brotem dos ‘sulcos de nosso ser’, como num movimento vital. Isabel Allende nos oferece um livro em que mescla a história de sua família com a história recente do Chile, produzindo alguns parágrafos em que o ato de escrever se transforma em signo de so-brevivência: cria miragens em um deserto real. Deve escrever como única forma possível de suportar a perda iminente de sua filha mais velha, Paula. Isabel escreve sem saber ao certo se sua filha, muito doente, vai poder ler suas memórias, que destino terão suas palavras. É o que motiva seu livro: à espera de que sua filha se recupere, decide lhe contar sua história. Paula adoece cada vez mais, e seus manuscritos se transformam em uma tentativa de permanência do que ameaça extinguir-se: a vida ao lado de sua filha.
Dias antes de iniciar como docente na Universidade da Califórnia, convidada para trabalhar narrativas com jovens aspirantes a escritores, Isabel se pergunta como se ensina a contar uma história. Às voltas com isso, um pouco atônita (na angústia da véspera), recorre a sua filha, Paula, que, ao telefone, lhe aconselha ironicamente: diga a seus alunos que escrevam um livro “ruim”, pois isso é fácil, qualquer um consegue. Isabel, um pouco ainda sem saber os efeitos que isso possa ter em seus tenros alunos, se lança nessa provocação. Assim, cada um dos alunos esquece sua ‘vaidade secreta de produzir o Grande Romance Americano’, lançando-se com entusiasmo no trabalho textual. Um dos escritos foi publicado em seguida, tendo grande repercussão entre os leitores. Nessas pequenas lembranças, Isabel Allende vai dando forma a sua “Paula”, marcando sua presença na história das gerações de sua família. Pode-se dizer que é um livro que produz uma sobrevivente, pois o caminho por onde nos conduz a perda de um ente amado é de uma radical elaboração de nossa própria morte. Morte em vida: daquele que não mais somos, deixamos de existir daquela forma, que só éramos para aquele que se foi. E, de certa forma, passamos a existir pelas palavras, criação permanente de nossas lembranças. Alguns livros intensos foram gerados em travessias como essa, por vezes tão árida e infinita!
Esse é um escrito que se propõe a contar uma história em que memórias de infância, lembranças coloridas com as tintas das fantasias infantis, conversam com a história do Chile das décadas de 60/70.
Isabel porta um sobrenome que a convoca a tomar posição: passa de uma jornalista de uma revista de moda, sem pretensões partidárias, a uma fiel defensora dos direitos humanos durante o regime militar vigente a partir do golpe de Estado que tira Salvador Allende da cena política e implanta um governo com perseguições e extermínios cruéis. Relembra-nos o trágico 11 de setembro de 1973, quando o presidente eleito nas urnas é levado a cometer suicídio – versão também aceita por sua família. “Paula” nos fala das mudanças ocorridas no Chile até se tornar inevitável o exílio da autora – longos anos distante de seus familiares e de seu país. Tive a alegria de encontrar referências importantes a Pablo Neruda que, segundo a autora, faleceu ‘de desgosto’ na sua “Isla Negra”, doze dias após a morte de Salvador Allende, seu amigo pessoal. Seu funeral foi acompanhado, não sem temores, por poucos, nas ruas de Santiago, enquanto corpos de presos políticos eram arrastados pelas águas geladas do rio Mapocho. Temos a oportunidade de irmos, várias vezes, com a família Allende, ao Cerro Sán Cristóbal. No início do livro, subimos com a criançada para piqueniques em família e visita ao zoológico e, algumas páginas depois, descemos esse mesmo Cerro acompanhando chilenos que necessitavam ajuda (de Isabel) para exilar-se do país.
Essas e muitas histórias se passam ao pé da cama de Paula, em um hospital público de Madri. Vítima de uma doença hereditária, que a lança em poucos dias em um coma profundo, na ânsia de não partir ainda, vida e morte são escritas lado a lado. Essa escritora, com sua espiritualidade pagã, nos ensina a difícil arte de deixar partir aqueles que já foram, mas que seguem ao nosso lado, partes de nós mesmos, nutrindo nosso desejo brutal de que não partam jamais.
Para quem já leu o ‘clássico’ “A Casa dos Espíritos”, encontramos ainda informações preciosas sobre o processo criativo da autora: construção do enredo e de personagens, bem como as repercussões desse livro em sua vida pessoal.

“Escrever me faz bem, apesar de ser às vezes penoso, porque cada palavra é como uma queimadura. Estas páginas são uma viagem irreversível por um longo túnel, não enxergo a saída, mas sei que deve haver alguma; impossível voltar atrás, tudo é questão de continuar avançando passo a passo até o final.”

Como proposta, sugiro que leiam sem pressa, pois o sabor desse livro nos incita a fazer o inverso: devorá-lo em uma sentada!

Fernanda Pereira Breda

Copiei do site da APPOA -Associação Psicanalitica de Porto Alegre

domingo, 11 de maio de 2008

DESCRONIFICANDO: Um incerto Capitão Nascimento



Iza Maria de Oliveira
Escrever sobre o filme “Tropa de Elite”, de José Padilha, consagrado (Urso de Ouro, Berlim, 2008; Prêmios na Academia Brasileira de Cinema, 2008), sobre o qual tantas críticas importantes foram escritas, é um risco inevitável quanto a uma restrição frente à sua riqueza e complexidade.
Uma das linhas de horizonte, apresentada em “Tropa de Elite”, através do personagem, Capitão Nascimento, acerca do espírito de nossa época é a situação do sujeito em crise com suas escolhas. Ou seja, a experiência de conflito na vida quando se impõe algo próximo a um “To be or not to be: that's the question”. Desde o início, assistimos o personagem, Capitão Nascimento, se debatendo quanto a várias questões, principalmente entre deixar ou não seu trabalho no Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro (BOPE), em função de sua vida de família. Trata-se de uma escolha que ele tem a fazer, estando implicadas perdas e efeitos de seu ato na vida do outro. Entretanto, este conflito vivido pelo personagem não é apresentado como proveniente de uma condição de culpa.
Uma escolha comporta uma tomada de posição, de reposicionamento de lugar de fala e de endereçamento ao outro. Escolher, própria condição do sujeito nos nossos tempos, não é uma tarefa fácil. Os pensamentos e palavras do Capitão demonstram isso. Uma escolha elevada a sua condição máxima de responsabilidade implica situar as perdas que o sujeito suporta e, principalmente, no que este ato implica na vida do outro. Esta pergunta é essencial numa posição de responsabilidade com seu desejo. Sendo assim, trata-se de um ato que não é fruto de uma pretensão de autonomia. Por isso, uma escolha comporta um reconhecimento deste desejo numa historicidade, na trajetória de uma vida do sujeito. Por exemplo, como uma mesma questão se pôs em momentos distintos de uma existência? Para uma verificação disto é imprescindível o tempo como condição de elaboração. Portanto, uma tomada de posição é efeito de um trabalho produzido dentro de um tempo.
Entretanto, como se permitir viver esta experiência em nossos dias? Pois, um trabalho de elaboração de um conflito implica um tempo de parada, de suspensão. Isto parece estar na contramão à lógica dos nossos tempos quando há um domínio pela busca de poções mágicas para soluções complexas. Ou seja, a resolutividade numa economia de tempo, ocasionando um curto circuito da posição do sujeito. Muitas vezes, como indica Calligaris (Folha de São Paulo, Ilustrada, 11/10/2007), assumir uma consciência culpada é uma forma de desculparmos de nossa inércia frente à culpa que sentimos.
Capitão Nascimento não é um herói de cavalaria, tampouco um anti-herói। É um homem que expõe as contradições que habitam em seu espírito, colocando em evidência o que há em cada um de nós: nossa condição de sujeitos que, numa ruptura com preceitos da tradição, acreditamos nos livrar dos impasses e percalços de uma liberdade individual.

Nos escreve a autora:
"Compartilho algumas idéias esboçadas em formato de texto, e publicadas na coluna, "Descronificando" (Jornal Hora H, 10/5/2008), para possíveis indicações e diálogos".

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Frase do dia:

"É nas sensações confusas que trazemos ao nascer que a linguagem deve reencontrar suas fontes, caso ela queira preservar para si a força do nome".
Pierre Fédida

domingo, 4 de maio de 2008

Texto publicado na revista PIAUI : "O amor anoitece"




JOÃO M. SALLES


1

No dia 16 de janeiro, o poeta gaúcho Fabrício Carpinejar recebeu um email. Não reconheceu o remetente. Olhou o campo do assunto e leu: “Convite poético”. Havia a dúvida: seria um convite em forma de poesia? Um convite para uma tertúlia poética? Nem uma coisa nem outra. “Oi, Fabrício, tudo bem?”, começava o texto. “Não nos conhecemos pessoalmente. Meu nome é Eliza, sou jornalista. Escrevo por um motivo especial. Pode parecer estranho, mas vale a pena tentar...” O poeta leu até o fim, e depois releu. Pensou consigo mesmo, pasmo. “Fui convidado para um casamento. Para celebrar um casamento...”

Era isso. Eliza Muto e Stefan Gan tinham decidido oficializar uma união que já existia de fato havia seis anos. Como não eram religiosos, dispensavam padres, pastores, rabinos e até um juiz de paz em troca de um poeta. “Afinal, quem mais capacitado para celebrar o amor do que o meu poeta favorito?”, perguntava a noiva, não sem sinceridade, mas com uma ponta de astúcia. Poderia haver argumento mais definitivo? O poeta acedeu. A delicadeza do pedido era sublime.

Carpinejar tomou um avião e no dia 29 de março, um sábado, desceu em São Paulo. O casamento estava marcado para as 6 da tarde, numa chácara da Vila Mariana. Às 5, já esperava na recepção pelo noivo, que viria buscá-lo. Nunca o vira —“Sinceramente, não conhecia ninguém: padrinhos, pais, parentes, amigos... iria para uma festa sem nenhum vínculo, a não ser a poesia” —, mas não tinha dúvida de que seria reconhecido.

Poetas gozam do direito a certas liberdades, e, no que diz respeito à etiqueta do vestuário, Carpinejar é um homem livre. Para a cerimônia, escolheu uma “calça esverdeada fashion”, uma camisa de botões de madrepérola (que, fosse outra a ocasião, formariam um belo time de botão) e um lenço carijó gaudério, preso por um anel no qual se entrelaçavam a bandeira do Rio Grande do Sul e a do Brasil. Ornando o rosto, óculos verdes louva-deus. O corte à máquina deixara sua cabeça calva, com exceção de três letras capilares: POA — vistosa homenagem aos 236 anos do torrão natal. A mão direita mostrava-se convencional. A esquerda, não: trazia as unhas pintadas de marrom, uma pequena traição à mulher, que agora disputava o horário da manicure com o marido. A quem lhe perguntasse sobre a idiossincrasia, Carpinejar oferecia respostas elaboradas: “Para não confundir meu filho: duas mãos pintadas são de mulher, uma é de poeta; ser conduzido por uma mão feminina, mesmo que seja a minha, é muito melhor; e também serve para não lavar louça: minha mulher nunca podia, alegava que estragava as unhas. Agora eu também não posso. Passamos a comer fora.”

O noivo chegou às 17h40 e não hesitou: era aquele o poeta. Entraram numa van, na qual já estavam os pais do nubente. Eram americanos e não falavam português. Muito menos esperavam por semelhante aparição. Não souberam disfarçar uma expressão de “Ah, Deus, é ele?!”, mas nada além: foram gentis, até porque não tinham escolha. Chovia a cântaros.

Ao chegar ao local do enlace matrimonial, a abundância semiótica de Carpinejar fez com que variadas pessoas o tomassem por: a) líder de uma seita regionalista desconhecida (lenço gaudério); b) curandeiro (unha pintada de marrom); c) membro de uma facção budista (cabeça raspada); d) homem-propaganda (um segurança decifrou POA como marca de água mineral); e e) cover de Bono Vox (óculos louva-deus). A desorientação não era apenas dos circunstantes. Também o poeta se viu confuso. A noiva entraria em cena somente no momento do altar — mas a noiva é quem o tinha convidado. “O que vocês combinaram?”, perguntou, ansioso, ao noivo. “Nada”, disse o rapaz, incapaz de desanuviar o celebrante. “Nem na minha primeira sessão de autógrafos fiquei tão nervoso”, confessaria depois Carpinejar.

Quando finalmente a noiva abriu espaço — de braço enlaçado ao do pai, luminosa, com seu vestido branco e suas tatuagens de flores derramadas nos ombros desnudos —, instalou-se o pânico. “Onde eu fico?”, perguntou ela ao poeta. “Por Deus”, contaria Carpinejar, “eu acreditava que não imitaríamos uma encenação oficial. Na ausência de coordenadas, assumi totalmente o sacerdócio. Distribuí os padrinhos, armei a entrega das alianças, improvisei os passos.” E esperou pelo milagre.

Que demorou a vir. Na primeira palavra, o microfone falhou. Uma criança gritou. Relampejou forte. O poeta pigarreou. E disse: “Sem querer, o casal está realizando o sonho da minha mãe. Ela queria que um de seus filhos fosse padre. Não entendia a desigualdade divina, que deu à família vizinha três padres e uma freira, mas para ela não reservou ninguém”. Sentiu que reassumira a própria voz. Os noivos sorriam, os padrinhos também, havia algo de bom no ar.


Ele então decidiu cumprir a função para a qual fora chamado: foi poeta. Olhou para os dois e disse: “O tempo passa rápido para os outros, não para vocês. O tempo está vivo em vocês. Minucioso. Detalhista. Obcecado. É como ficar o dia inteiro em casa. E, de repente, perceber que anoiteceu. ‘Já anoiteceu’ é uma das expressões mais bonitas. Significa que não controlamos as horas. Casar é anoitecer. É quase perguntar: ‘Como chegamos aqui?’”

E, como os noivos sabiam muito bem como haviam chegado ali, o poeta encerrou: “Stefan, você ama Eliza?” Ela disse que sim. “Eliza, você ama Stefan?” Stefan amava. “O ‘Eu te amo’ dispensa qualquer nova pergunta. O que vier depois será resposta, como este casamento. Eu abençôo os noivos, casados em nome da poesia.” O casal se beijou, e o sacerdote desconfia que os dois choraram dentro do beijo.


quinta-feira, 1 de maio de 2008

A VIDA DOS OUTROS


Eu vi o filme "A vida dos outros" citado por Contardo nessa crônica. Uma das coisas que chamou a atenção nesse filme foi a forma de tortura que era imposta aos artistas. Usavam uma pesquisa realizada por um psicologo onde ele descobriu que quando um artista ficava durante muito tempo isolado, mesmo sendo bem tratado, bem alimentado, nao produzia mais nada para o resto de sua vida se ficasse sem se comunicar, isolado do mundo externo. Bien, ai está a crônica do Contardo onde ele escreve um pouco mais sobre o filme....



O mistério é a banalidade do bem: por que alguns encontram a vontade de resistir ao horror?

É UMA HISTÓRIA que já contei, mas não tenho como evitar esta breve repetição. Anos atrás, defendi uma tese de doutorado sobre a questão seguinte: como é possível que homens quaisquer, sem nenhuma predisposição moral ou patológica, homens como você e eu, possam se tornar algozes?
O exemplo central da tese eram os inúmeros sujeitos que, durante o nazismo, atuaram, direta ou indiretamente, como agentes de extermínio.
Excluí a minoria que era motivada por uma certeza ideológica e os pouquíssimos sádicos, que, aliás, eram descartados pelo próprio processo seletivo dos SS. Também confirmei que, no caso da "tarefa" genocida, as punições para quem não obedecesse às ordens eram mínimas, se não nulas.
Sobraram-me, então, batalhões de reservistas, pais de família, "brava gente", provavelmente animados pela mesma moral básica que todos compartilhamos. Como explicar sua complacência e seus atos?
Cheguei a esta resposta inquietante: qualquer um (ou quase) pode se esquecer de sua humanidade não por convicção nem por crueldade ou por medo, mas, simplesmente, pelo descanso que ele encontra na obediência, no sentimento de fazer parte de uma máquina da qual ele pode ser uma pequena engrenagem. Desejar, pensar e agir como indivíduo é penoso; muito mais fácil é renunciar à subjetividade (sempre atormentada) para transformar-se em burocrata do mal.
Meus argumentos convenceram os que os leram. Mas fiquei com uma pergunta: tinha jogado um pouco de luz sobre a "banalidade do mal" (como dizia Hannah Arendt), mas o que continuava misterioso era a banalidade do bem. Entendia como milhares de homens comuns puderam se tornar algozes; não sabia por que alguns, nas mesmas condições, tinham encontrado a vontade de resistir.
Não penso nos que, animados por seus ideais, levantaram as armas ou a voz contra os totalitarismos do século 20. Gostaria de entender os pequenos gestos de resistência que surgiram do nada, sem uma motivação que fosse clara para o próprio agente. Gostaria de entender o fascista simpatizante que, um dia, no meio de uma batida policial, escondeu um judeu, um homossexual ou um resistente. Ou o burocrata que, de repente, apagou o nome de uma família de uma lista de deportação ou avisou alguém que ia ser preso, para que fugisse a tempo.
No nosso cotidiano imediato, na esquina de casa, por que, às vezes, se abrem frestas de humanidade e resistência na parede uniforme da complacência?
Estreou, na semana passada, "A Vida dos Outros", o filme alemão, de F. H. von Donnersmarck, que foi Oscar de melhor filme estrangeiro em 2007.
Os fatos narrados acontecem durante os últimos anos da Alemanha Oriental, um regime talvez inigualado em seu caráter totalitário e policial.
Claro, é uma história de homens transformados em burocratas sinistros pela vontade de impor seu capricho aos outros e, sobretudo, pelo vazio de sua vida. Mas é também a história do ato de coragem repentino (pequeno ou grande, depende do ponto de vista) de Gerd Wiesler, um oficial da Stasi, a polícia do regime.
Saí do cinema me perguntando o que, no filme, tinha motivado a insubordinação de Wiesler. Foi a descoberta das razões sórdidas de seus superiores? Foi a simpatia por suas vítimas ou, quem sabe, o amor por uma delas? Foi a leitura de um poema de Brecht? Ou a escuta de uma sonata? Ou talvez a comparação entre a miséria silenciosa de sua existência e o ruído de amores, conversas e idéias na vida dos que eram objetos de sua escuta contínua?
Numa cena tocante do filme, Wiesler chega em casa (uma espécie de protótipo do anonimato), cobre seu espaguete com extrato de tomate frio e senta diante do televisor que transmite crônicas políticas do regime. Há, na vida de Wiesler, uma irrelevância e um deserto afetivos que são o próprio estigma da complacência burocrática, mas que talvez sejam, ao mesmo tempo, a causa de uma vontade inesperada de fazer, por uma vez, a diferença, de se permitir um ato que valha a pena ser lembrado e contado.
Raramente assisti a um filme que, de maneira discreta e humilde, me ajudasse tanto a entender o que, de repente, no marasmo, pode nos devolver nossa humanidade e nos levar a fazer a coisa certa.
PS: O livro de José Saramago mencionado na coluna passada, "O Conto da Ilha Desconhecida", foi publicado em 1998 e reimpresso recentemente.

CONTARDO CALLIGARIS