quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

CASMURRO ABRE O JOGO

Em apenas um capítulo, o cavalheiro tolerante e refinado sutilmente se transforma em patriarca suspeitoso e primitivo
ROBERTO SCHWARZ

Como esta é uma homenagem a Machado de Assis, vou falar da qualidade do trabalho artístico dele, que é verdadeiramente excepcional e não é fácil de notar. Os capítulos de abertura dos seus romances são obras-primas, um melhor que o outro. A sua sutileza é tão grande que freqüentemente passa despercebida. Eles requerem uma espécie de atenção absoluta que não estamos acostumados a dar à prosa. Dizendo de outro modo, eles pertencem à tradição nova – começada com Flaubert – do romance escrito com os cuidados até então reservados à poesia. Vamos ler a primeira página de Dom Casmurro e vocês vão ver do que estou falando:


Do Título

Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei num trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado, fechei os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso.

– Continue, disse eu acordando.

– Já acabei, murmurou ele.

– São muito bonitos.

Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso, mas não passou do gesto; estava amuado. No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou alcunhando-me Dom Casmurro. Os vizinhos, que não gostam dos meus hábitos reclusos e calados, deram curso à alcunha, que afinal pegou. Nem por isso me zanguei. Contei a anedota aos amigos da cidade, e eles, por graça, chamam-me assim, alguns em bilhetes: “Dom Casmurro, domingo vou jantar com você.” – “Vou para Petrópolis, Dom Casmurro; a casa é a mesma da Renania; vê se deixas essa caverna do Engenho Novo, e vai lá passar uns quinze dias comigo.” – “Meu caro Dom Casmurro, não cuide que o dispenso do teatro amanhã; venha e dormirá aqui na cidade; dou-lhe camarote, dou-lhe chá, dou-lhe cama; só não lhe dou moça.”

Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não achei melhor título para a minha narração; se não tiver outro daqui até ao fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto.

Não vamos esquecer que essa passagem é uma explicação do título do livro, oferecida pelo próprio autor, ou pseudo-autor. De início assistimos à tensão ligeiramente cômica entre dois cavalheiros num vagão de trem, uma espécie de guerrilha de esnobismo.

Um, o mais velho, que é o narrador, quer que o deixem tranqüilo. Outro, mais jovem, quer entabular conversação. O mais velho é reservado e distinto, e preza a privacidade a que as pessoas civilizadas têm direito num trem. Ele se defende dos passageiros metidos.

O mais moço é um morador do bairro e se comporta com a familiaridade normal entre vizinhos, familiaridade à brasileira, que não incomoda senão os pretensiosos. Mas sem-cerimônia não é inferioridade, e também ele aspira à distinção, à condição superior, de gentleman: a conversa sobre a lua e os ministros e a declamação de versos – tudo chavões acanastrados, que indicam a gente distinta – são a prova disso.

Noutras palavras, a distância que o primeiro cavalheiro quer impor ao segundo é uma arrogância descabida. Ele fez por merecer o apelido de Casmurro.

O apelido tem sorte e pega. Os demais vizinhos do bairro, que nutrem o mesmo ressentimento contra o cavalheiro que não quer conversa, adotam o nome com prazer, para marcar a irritação com a pretensão aristocrática.

Pois bem, o viajante mais velho não se zanga e conta a história de suas desventuras de bairro aos amigos elegantes que vivem no centro. As futricas da periferia são assunto de conversação para a gente superior. Por sua vez, os amigos elegantes também se divertem com o apelido e passam a usá-lo.

Em conseqüência o próprio Dom Casmurro o acha simpático e decide adotá-lo como título das memórias que começa a escrever.

Recapitulando, o apelido a) se deve ao encontro casual entre dois passageiros; b) ele se firma devido a uma antipatia social, que opõe um bairro a um cavalheiro calado ou pretensioso; c) o apelido viaja a outro bairro mais fino, levado pela tolerância elegante desse mesmo cavalheiro, que gosta de contar a história; d) o apelido firma-se também no bairro mais fino, graças ao humorismo da roda dos amigos bem-postos; e) nessa altura a vítima do apelido acha graça nele, perdoa a intenção insultuosa e o adota em espírito de conciliação com o companheiro do trem.

Assim, o processo através do qual nasceu o título do livro é uma ostensiva lição de tolerância: ele envolve a superação da animosidade entre duas pessoas, uma animosidade que tem conotação de classe; envolve também a superação da birra entre bairro e centro da cidade; e mostra enfim que há gosto e charme em superar essas pequenas tensões.

Noutras palavras, o título do livro é o resultado de um processo em várias etapas, com acento na conciliação e na conservação: o apelido retém e combina algo dos diferentes instantes, das diferentes pessoas, das diferentes classes, dos diferentes bairros que o fizeram existir. Sem que as oposições se apaguem, nada se perde, tudo se conserva vivo e contribui à sua maneira, o que mal ou bem é um exemplo de harmonia.

Note-se também a parte importante do acaso nesse processo. Os passos que levaram à escolha não são guiados por nenhuma intenção marcada, nem por uma finalidade que os unifique. Eles vão acontecendo, mais ou menos à deriva. Essa é uma concepção realista do curso das coisas, sem as ilusões de uma providência superior, e sem pretensões de guiar o mundo. Aliás, a capacidade do narrador de adaptar-se às contingências da vida parece ser uma sabedoria, uma forma de elegância, de saber viver.

Note-se igualmente que o roteiro faz parecer irreais as fronteiras entre o “teu” e o “meu”, entre o que é de um e o que é de outro, e que essa suspensão tem uma beleza muito própria. De fato, o título de livro acolheu e acomodou razões de proveniência variada e oposta, sem corresponder a nenhuma com exclusividade. Repisando, ele foi se fixando através do choque casual entre intenções individuais, entre grupos sociais, entre bairros, sem ser devido a nenhum desses elementos em separado, e dando alguma satisfação a todos.

Ou melhor, ele é um resultado da vida da cidade ela mesma, com suas divisões – um resultado que veio a ser, sem ter sido buscado, e que é poético e generoso por isso mesmo.

Também aqui há uma espécie de sabedoria moderna, que consiste em viver mais com a cidade como um todo que com uma contabilidade estrita do que é devido a cada indivíduo em separado.

Até agora, o nosso comentário dessa tolerância do narrador, com o seu cavalheirismo particular, se deteve a três linhas do final do capítulo, quando o tom do argumento muda sensivelmente.

Na linha anterior à mudança, completando o processo de conciliação, o autor dizia: “Também não achei melhor título para a minha narração; senão tiver outro daqui até o fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor.” Ou seja, o poeta do trem incomodou o cavalheiro reservado, mas este aproveitou para título o apelido implicante que o primeiro lhe tinha posto, e ficam elas por elas.

Em seguida, contudo, entra a nota diferente, de escárnio: “E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua.” A ironia sugere que é bem possível que o poeta do trem seja displicente, seja folgado em questões de propriedade, e isso naturalmente seria algo como uma apropriação, para não dizer um -roubo. O narrador que não viu problema em tomar emprestado um título, logo em seguida imagina que lhe possam roubar a obra.

Em seguida, a última frase do capítulo: “Há livros que apenas terão isso de seus autores; alguns nem tanto.” A tolerância que não via mal na dimensão coletiva ou sem cerca da imaginação, e que até se comprazia nela, se transformou em seu contrário. As coordenadas da propriedade passaram para o primeiro plano: além do título (mas quem tomou emprestado o título?), o próprio corpo do livro pode não ser de quem parece. Há livros andando por aí que não têm de seus autores presumidos nem o título nem a substância. Ou ainda, inversamente, há autores andando por aí cujos livros não são seus.

A que corresponde esse tom escandalizado e amargo? Há uma vaga sugestão de caos, de vida desqualificada, atrás da idéia de uma vida fora das pautas da propriedade. A esta altura o autor está denunciando a ladroeira generalizada, a um passo de chamar a polícia.

A mudança de tom é abrupta, mas ainda assim é inocente: em fim de contas trata-se apenas das vaidades e dos pesadelos da autoria. Pois bem, se recordarmos que a obsessão de Dom Casmurro é a paternidade duvidosa, o argumento adquire conotações novas. Com efeito, essas ambivalências em relação à autoria são o primeiro anúncio, em surdina, do tema da paternidade incerta. Se substituirmos a palavra “livro” pela palavra “filho”, a temperatura sobe violentamente: “Há filhos que apenas terão isso (o nome) de seus autores (pais); alguns nem tanto.”

Aí estamos, no mundo desconfiado e brutal das obsessões patriarcais, em que a humanidade não é composta senão, com perdão da palavra, de filhos-da-puta.

A transformação súbita do cavalheiro tolerante e refinado em patriarca suspeitoso e primitivo é um movimento central de Dom Casmurro e da visão que Machado construiu da elite brasileira.

http://www.revistapiaui.com.br

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

terça-feira, 11 de novembro de 2008

domingo, 9 de novembro de 2008

“A ficção para ser purificadora precisa ser atroz। O personagem é vil para que não o sejamos। Ele realiza a miséria inconfessa de todos nós”. Nelson Rodrigues

domingo, 26 de outubro de 2008

A INDEFINÍVEL ANGÚSTIA

Como saber quando a sensação, normal e até saudável, está passando do limite

A angústia é um daqueles conceitos que todo mundo entende, mas ninguém consegue definir. Uma sensação de aperto que não é física, uma violenta agitação imóvel, uma ferida que dói e sangra não por fora, por dentro. Imagens sem fim podem ser usadas para descrevê-la, mas nenhuma a abraça. Diante de uma aflição de limites tão imprecisos, uma pergunta se impõe: como saber quando a angústia deixa de ser uma reação psíquica normal e até saudável para se transformar em doença?

O tema se tornou tão atual que a Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa) resolveu dedicar seu próximo congresso, de 14 a 16 de novembro, integralmente à angústia, abordando-a sob enfoques como o econômico e o cultural. O psicanalista Robson de Freitas Pereira, um dos coordenadores do encontro, diz que não há regras fixas para saber quando ela passou do limite do normal e entrou no campo do patológico. Mas há alguns sinais que devem fazer o alarme soar. A ajuda de um profissional é necessária quando o indivíduo é levado a se desqualificar por estar angustiado e interpreta a angústia como um sinal de fracasso – no trabalho, na função paterna ou na relação amorosa, por exemplo.

– Está na hora de buscar auxílio terapêutico quando o sofrimento se torna repetitivo demais, a ponto de tomar conta da identidade do indivíduo – aconselha Pereira.

Observar as pessoas ao redor também pode ser uma boa orientação: quando parentes e amigos começam a se angustiar junto, é sinal de que a angústia passou do limite।

http://zerohora.clicrbs.com.br

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

A Charada do Coringa

Por que tão sério?

O demoníaco Coringa da derradeira atuação de Heath Ledger (em Batman – O Cavaleiro das Trevas, de Christopher Nolan) roubou a cena. O jovem ator australiano construiu um vilão cheio de tiques e olhares alucinados, representando uma encarnação do mal digna da linhagem do Hannibal de Hopkins e do Iluminado de Nicholson.

Complementar a essa performance, está a brincadeira que o Coringa faz com a psicogênese do mal: cada vez que ameaça cortar ou matar uma de suas vítimas, compraz-se em narrar um trauma de infância, que teria dado origem às suas cicatrizes e à sua crueldade. Porém, ele mente ou distorce, pois ele sempre conta um episódio diferente. As versões giram em torno duma história familiar trágica e triste, conseqüência da qual teria ficado em seu rosto um corte em ambas comissuras labiais que lhe impõe um “sorriso” sinistro. Um trauma que justificaria o fato de que ele se divirta com o sofrimento alheio.

A maldade gratuita do palhaço demoníaco de Ledger ridiculariza nosso desejo de controlá-la, como se ao lhe saber a origem pudéssemos também prevenir e, principalmente, garantir que ela não se expresse. Enigmaticamente, ninguém é alheio ao mal: todos nós retiramos algum prazer da evocação da violência e do assassinato em nossos sonhos e devaneios, na ficção, nos jogos.

É no bordão usado pelo Coringa quando está subjugando suas vítimas, que talvez possamos encontrar um esboço de resposta sobre a origem da maldade. Ele lhes pergunta: “por que tão sério?”, enquanto tenta matá-las. A seriedade a que se refere é a de não estar rindo, como ele próprio, cuja cicatriz o força a uma boca sempre sorridente, tão artificial como a das mulheres excessivamente plastificadas. O patético riso do Coringa parodia a felicidade compulsiva e aparente, exibida nos comerciais e nas revistas de celebridades. O Coringa é o monstro do império do gozo. Todos devemos ser ricos, ociosos, que alguém nos sirva e divirta o tempo todo, ter orgasmos múltiplos, não suportar contrariedades nem enfados. O problema é que na vida a chatice é regra e a felicidade exceção. Nesse simulacro de alegria, é preciso viver sempre como se estivéssemos a bordo de um iate, rodeados de amantes, lindos e jovens. Frente a isso, como suportar os enfados dos vínculos amorosos, familiares, do trabalho? O Coringa não tem essas mágoas, ele é louco de rasgar dinheiro, seu gozo desmedido não tem preço, está sempre a seu dispor. Esse vilão na sua plenitude é sob medida para nosso mundo imediatista: ele não quer, ele pega।
Linkterradonunca


terça-feira, 30 de setembro de 2008

ENSAIO SOBRE A COVARDIA



Machado da Silva

Correio do Povo, 30/09/2008Cada lugar tem as suas rivalidades incontornáveis। No Rio Grande do Sul, sou colorado, maragato e Cyro Martins, enquanto outros são gremistas, chimangos e Erico Verissimo. Em Portugal, sou Lobo Antunes, enquanto metade do país é José Saramago. É sempre o mesmo esquema. Lobo Antunes é cético, cínico, irônico, barroco e desconstrutor de mitos. Saramago crê. Dá lições de moral. Aposta no futuro, até no futuro do passado, conservando sua carteirinha de comunista nem que seja para fazer gênero. Mesmo assim, fui ver 'Ensaio sobre a Cegueira', dirigido pelo mauricinho Fernando Meirelles. Eu implico com Meirelles e com Walter Salles. Cada vez que os dois fazem algo, há um batalhão de bajuladores para dizer logo que finalmente o mundo tem uma nova obra-prima. É sempre menos do que dizem esses lobistas de plantão, entre os quais se destacam Contardo Calligaris e Jurandir Freire. O filme é legal. Bem menos chato que o livro. O bom de certos filmes é que dispensam muita gente de ler alguns livros rebarbativos. A idéia de Saramago foi genial. A execução bem menos. É a história da covardia humana. Qualquer pessoa razoavelmente lúcida sabe que a humanidade não é confiável. Uma maneira, por exemplo, de falar do Holocausto. Mas não dos homens-bomba de hoje, que morrem por suas causas, muitas vezes absurdas ou patéticas, mas não aceitam a humilhação passiva. Jean Baudrillard dizia que era essa a superioridade dos terroristas em relação à ideologia ocidental da morte zero, do risco zero, da incapacidade de morrer por uma idéia. O problema do filme e do livro é que, como quase sempre acontece com Saramago, ele pesa a mão na parábola. A mensagem é redundante: a humanidade não enxerga o essencial, não vê um palmo à frente do nariz, não percebe que se extravia em mesquinharias deixando o relevante - o amor, a generosidade, a cooperação, os bons sentimentos, a solidariedade, a mão estendida - de lado. Como duvidar disso? Mas é explícito demais. O fato de só uma pessoa continuar enxergando entre todos os atingidos pela súbita cegueira parece indicar algo ainda mais óbvio: a necessidade de um líder de visão ou de uma vanguarda iluminada. Pode-se, contudo, sair do cinema com a mensagem inversa: não tem jeito, o homem é mau por natureza e, em qualquer situação, seguirá os seus instintos mais baixos. Ou, ainda, com uma leitura menos extremista: há sempre bons e maus, parasitas e parasitados, cretinos e nem tão cretinos assim. Depende.Saramago remete à velha lição de Hobbes: o homem é o lobo do homem. Ainda é nobre demais. Filosófico demais. O homem é o cão. Místico demais. O homem é o cachorro do homem. Mais atual. Em todo caso, não precisa ser muito esperto para ter essa sacada. 'Ensaio sobre a Cegueira' mostra que não há nada de novo no front. Cinismo, maldade, ambição desmesurada, covardia e falta de caráter continuam a travar um combate diário com os seus opostos e, com freqüência, levam vantagem. Criativo, o Brasil antecipou o livro inteiro de José Saramago numa frase publicitária que marcou época, a chamada Lei de Gérson: 'Eu gosto de levar vantagem em tudo, certo?'. Errado. Mas vá convencer os defensores de que só a competição melhora o mundo dessa verdadezinha tão sem graça. O sujeito sai do cinema com uma certeza: pior cego é o que vê demais.



sábado, 27 de setembro de 2008

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Freud explica?


Sexta-feira, Maio 18th, 2007

Jean-Pierre Lebrun e o ressurgimento de Robinson Crusoé

O nono encontro do curso de altos estudos Fronteiras do Pensamento trouxe dois grandes nomes da psicanálise atual, o francês Charles Melman e o belga Jean-Pierre Lebrun com as conferências O pensamento de Fronteiras e Subjetividade e laço social, respectivamente. Apresentadas pela jornalista Tânia Carvalho, na noite de terça-feira, 16 de maio de 2007, as palestras tiveram o mesmo tema principal, a aquisição dos códigos de linguagem social e a conseqüente “perda do gozo”, conceito já analisado por Sigmund Freud e retomado por Jacques Lacan.

Partindo da atual incapacidade dos pais de dizerem “não” a seus filhos, o primeiro convidado da noite, Jean-Pierre Lebrun, discorreu sobre a mutação dos laços sociais, causada por indivíduos que hoje negam os interditos fundamentais ao ser humano − sentimentos de culpa, dúvida, escrúpulos, inibição do pensamento e da ação etc. −, responsáveis pela perda do gozo durante o processo de aquisição dos códigos da linguagem e da sociedade. Segundo o especialista, a figura da criança, que segue suas próprias leis e é ignorante quanto a conceitos de certo e errado, vai de encontro às regras sociais ao incorporar os códigos da linguagem. “O enfant, então” (criança em francês – aquele que não fala), “vai precisar subjetivar, tornar suas, as leis em todos os níveis impostos. Há a perda do gozo para que algo se implante: a capacidade de falar”, elucida.

Continuando o raciocínio, o psiquiatra fez uma análise histórica da sociedade que outrora assumia uma organização hierárquica piramidal, tendo no topo a figura de Deus e dos seus representantes na Terra. Porém, atualmente, por meio do discurso da ciência, do questionamento das autoridades religiosas e políticas, da mão invisível do neoliberalismo, que acaba por extinguir a necessidade de um comando maior que organize as estruturas e da instituição da democracia – como exemplifica o médico –, o homem parece destruir as posições sociais diferentes das suas próprias, que Lebrun chama de “lugar de exceção” ou “lugar de diferença”. “O que antes se colocava no lugar de Deus, hoje é compartilhado pelo povo; tornam-se lugares sociais e perdem a necessidade de existir. Tornamo-nos seres autônomos. A perda do gozo necessária para a humanidade passa a ser questionada”, afirma, explicando a conseqüência da falta de uma liderança a ser respeitada e seguida pelo coletivo, e acrescenta: “A noção do interdito, que servia para regular, também perde o efeito. Hoje não há mais regulação, o que é ótimo para a economia de mercado. Mas, na sociedade concreta, este desmanche do lugar de exceção deslegitima aqueles que têm por tarefa assumir a perda do gozo, como professores, que precisam dizer não aos alunos ou dar um conceito negativo, ou políticos, que se encontram numa impossibilidade de guiar o povo”.

A construção do sujeito, feita pela educação proveniente dos pais, também se desfaz, retoma o médico. Sem as regras e interditos, cria-se um sujeito para o qual a chance de intervir na sociedade foi banida. A criança se torna um homem que não produz, um sujeito que, como conceitua o colega de conferência Charles Melman, não tem gravidade, que flutua em meio às classes desfeitas. Lebrun esclarece a figura deste novo homem, que já não faz mais suas escolhas, pois “o ato de optar acarreta em assumir a perda do que não escolho”. Este homem que é a personificação da criança generalizada, conceito criado por Jacques Lacan, que não aceita se deixar limitar por algo em proveito do coletivo, “é como um Robinson Crusoé cercado por outros Robinson Crusoé, que não querem encontrar ninguém, são jovens traumatizados pelo encontro”, argumenta.

Os interditos fundamentais aos seres humanos, ao serem negados, custam um alto preço para o belga. Da negação do interdito do assassinato, surge uma violência sem direção, generalizada, de um indivíduo que já não sabe mais do que se queixa. “Temos que fazer uma leitura destes sujeitos como apelos mudos por alguém que os tirem deste impasse”, mostra o psicanalista, enfatizando seu papel como profissional da área, e segue: “O discurso do laço social como é promovido hoje, livre do lugar de exceção, provoca uma grande confusão. As trocas humanas não podem entrar no campo das trocas comerciais, pois não podem se livrar das características fundamentais aos homens. Ao negarmos o lugar de diferença, criamos a dificuldade de estarmos diante de alguém que não quer o mesmo que nós. Como teremos o lugar de exceção para optarmos pela decisão final?”, questiona, trazendo a simples situação de um casal que deseja viajar. Se um preferir ir para o campo e o outro para a praia, sem lugar de diferença, dentro da esfera de negação dos limites, não haverá parâmetros para escolhas e inevitavelmente chegaremos a incessantes conflitos.

Para concluir a palestra, Jean-Pierre Lebrun aponta a importância dada à televisão quando utilizada como subterfúgio para escapar de possíveis discussões, uma realidade européia nem tão distante da brasileira. “Hoje impedimos os conflitos evitando que o sujeito analise seu próprio lugar. Por exemplo, na Europa, 60% dos jovens têm televisão em seus quartos. É um modo eficaz de evitar o conflito na família na hora de optar pelo programa. Cada jovem poderá ser um Robinson Crusoé sozinho em seu quarto. Os pais livram as crianças do confronto com o Outro – logo na fase em que alguém deve ajudá-los a controlar suas pulsões mortíferas, justamente aí há este abandono. Como um adolescente que escapou deste trabalho de elaboração das atividades de construção da psique pode reagir? Só lhe resta jogar-se pela janela, ou seja, resolver a violência de forma mais violenta ainda”.

O homem sem fronteiras de Melman

Dialogando com a primeira exposição do colega, Charles Melman iniciou expondo a angústia natural de um homem que nasce livre das regras de conduta e precisa construir seu comportamento. Preso nos confrontos com outros homens e no direito natural, que estabelece mais leis intrínsecas à humanidade, ele se obriga a pensar as restrições do bem e do mal, do correto e do injusto. Frente ao que os gregos denominaram temperância – a moderação do comportamento instintivo animal, ou a regulação do impulso selvagem –, este homem não pode mais permitir a totalidade do gozo, “pois o que o diferencia dos outros animais é justamente a medida”, ilustra o psicanalista. “Com origens numa espécie de direito que vem aniquilar a humanidade com base na autoridade divina, esta moderação, ou recalcamento do desejo como norma social, é a causa das neuroses”, completa.

Seguindo a explicação da corrente freudiana, Melman esclarece que a renúncia ao gozo, a qual Lebrun já havia citado, implica a neurose. Através do tratamento analítico, Freud percebe que “o paciente descobre que seu gozo estava organizado pela perda de seu objeto mais caro – no complexo de Édipo –, o limite de poder livremente passar ao gozo sexual. Com a perda deste objeto essencial e sem o reconhecimento desta instância guardiã limite, que é a mãe, ele não mais se fixa em projeções”, relata o especialista, que conclui o raciocínio explicando que as patologias psiquiátricas surgem ao negar este limite natural ao homem, ao recusar esta fronteira da linguagem constitutiva e à qual ele está inevitavelmente exposto.

Segundo Melman, a linguagem é um sistema de códigos similar à lógica estudada pelos gregos e traz a certeza de uma falha central, a impossibilidade de responder todas as questões que ela mesma levanta, como já propôs o matemático alemão Kurt Gödel e seu “Teorema da Incompletude”. Da tentativa de escapar deste limite, surgem as patologias, como explica: “A linguagem é um sistema impreciso e inadequado. Se eu tiver acesso a uma língua precisa, mergulho num sistema patológico de pensamento infinito, que é a paranóia. A bulimia e a anorexia, porém, são uma tentativa de possuir e incorporar este limite”, finaliza.

O segundo conferencista termina a noite apontando a importância de pensarmos as fronteiras que têm como objeto um novo homem e uma nova realidade que, para Charles Melman, é “esse mundo onde nada mais parece impossível, onde tudo é permitido। É possível que isso seja equivalente à suspensão do pensamento. Carecemos de pensamento há anos. Esperamos que aqueles que intitulamos pensadores nos dêem meios de compreender os fenômenos que nos arrastam, de nos suprir com a diferença que parece surgir deste pensamento, deste pensamento feroz”.


दो ब्लॉग http://backstagenet.hospedagemdesite.com/fronteiras/blog/?m=200705

Conferência ministrada em 15/05/2007.

sábado, 23 de agosto de 2008

Para refletir...

"muita coisa nos diverte, mas o que vale sao as experiências que nos transformam"
Wim Wenders

domingo, 17 de agosto de 2008

"Há um centro de valorização da morte na internet"






O psicanalista afirma que é preciso punir aqueles que incitam os internautas fragilizados ao suicídio



ELIANE BRUM



O psicanalista Mário Corso só aceitou dar esta entrevista porque tem convicção de que Vinícius Gageiro Marques, o Yonlu, foi vítima de um crime. E por que esse crime, praticado nas “ruas escuras da internet”, segue levando adolescentes frágeis à morte. Foi uma decisão difícil. Corso era o psicanalista do garoto de 16 anos que se suicidou ao se trancar no banheiro com duas churrasqueiras em chamas em julho de 2006. Seu paciente planejou a própria morte com a ajuda de sites na internet e a transmitiu em tempo real, incentivado por participantes de um chat. Quando Corso chegou ao apartamento da família, em Porto Alegre, Yonlu já estava morto. É terrível para qualquer pessoa falar sobre a perda de uma vida. E é preciso muita coragem para um psicanalista submeter-se à tremenda exposição que é falar sobre a perda de um paciente. Depois de conversar com a mulher, a também psicanalista Diana Corso, e as duas filhas, ele aceitou dar entrevista a Época em nome do interesse público. Mário Corso acredita que é preciso caçar aqueles que incitam pessoas ao suicídio, encobertos covardemente pelo anonimato da rede. Ao longo da entrevista de mais de duas horas, em seu consultório na capital gaúcha, a dor do psicanalista era exposta. A da família também. Sua mulher ligou três vezes para saber se ele estava bem. Diana tinha razão para preocupar-se. A taquicardia era perceptível, em muitos momentos ele ficava ofegante, a voz quase sumia. Mário Corso sofria. Não só porque doía falar sobre algo tão brutal, mas também porque ele sente saudades de Yonlu.



QUEM É Mário Corso: Psicanalista, casado, tem duas filhas e 48 anos. Nasceu em Passo Fundo, Rio Grande do Sul. É professor e membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa) O QUE PUBLICOU Monstruário (Tomo Editorial) e Fadas no Divã (Artmed), em co-autoria com sua mulher, a psicanalista Diana Corso.



ÉPOCA – Por que você aceitou dar essa entrevista?
Mário Corso – Porque esses suicídios seguem acontecendo, incitados por pessoas na internet, pessoas que não sabemos quem são e que não são responsabilizadas pelo que fazem com adolescentes, pelo que dizem a pessoas fragilizadas. Decidi dar essa entrevista porque isso é um crime e precisa parar. Temos um CVV, Centro de Valorização da Vida. E na internet há um CVM, Centro de Valorização da Morte. Talvez a gente nem saiba sobre outros suicídios que aconteceram por aí, que tiveram como fator decisivo algum tipo de CVM. Essas coisas não são tão fáceis de saber. Mas precisamos ter com essas pessoas a mesma preocupação que temos com outros criminosos. Já existe uma preocupação grande com a pedofilia, uma caça aos pedófilos na internet. Eu decidi dar esta entrevista porque acho que a gente tem de caçar essa gente também. Antes que eles matem mais. Eu acho que temos de aprender a lidar com o fator mórbido da internet, que são esses grupos de auto-ajuda que servem para não deixar de ficar doente, para não deixar de usar drogas, para não parar com a bulimia, com a anorexia. E temos de aprender a lidar com essa gente covarde que diz a um adolescente para se matar. A gente tem de criar formas de responsabilizar quem faz esse tipo de coisa.

ÉPOCA – Na carta que deixou aos pais, Vinícius escreveu que você poderia ajudá-los a entender as razões do suicídio. Por que ele se suicidou?
Corso – Esse menino estava numa crise prolongada de angústia. Não foi a primeira tentativa de suicídio dele. Ele já havia tido crises anteriores que conseguiu contornar. Uma vez ele se sentou na beira da cobertura e me ligou. A gente ficou falando um bocado de tempo sobre se valia a pena pular ou não. E ele não pulou. Ele precisava ouvir a voz de alguém que o lembrasse da sua ligação com a vida, dos laços que tinha com os que o rodeavam. Não havia uma outra voz dizendo para ele pular. E acredito que isso fez toda a diferença.

ÉPOCA – A internet parece tê-lo auxiliado no suicídio em dois momentos: nos sites que ensinavam métodos de tirar a própria vida e nos chats em que ele discutia seu desejo de se suicidar. Na hora do suicídio ele escreveu no chat que estava se suicidando e pediu ajuda porque não suportava o calor das chamas. Neste momento, o que essa voz na internet representou? Corso – O que a internet faz é dar suporte a uma idéia. Namorar a idéia do suicídio é uma coisa que muita gente faz, é fantasia comum na adolescência e visitante freqüente dos desesperados. Chegar à beira de se matar também é algo que ocorre muito mais do que se admite publicamente, mesmo com pessoas que estão bem acompanhadas na vida, que possuem vínculos sólidos. Mas poucos chegam a se matar. Na hora, falta uma energia extra. Há uma força vital que nos segura no último momento. Essa força que nos prende ao grupo, às outras pessoas, ao quanto os outros gostam da gente e ao quanto nós gostamos dos outros. Isso tece uma rede, uma teia que nos suporta na vida. Muitas vezes, quando o sangue aparece nos pulsos cortados, as pessoas acordam do seu transe mortífero e pedem ajuda. Para dar esse último passo, se suicidar, é preciso de um desespero, de uma desesperança muito forte ou de alguém que te puxe para baixo.

ÉPOCA – A polícia entendeu que não existem provas de incitamento ao suicídio, portanto não houve crime. O que você acha?
Corso – Eu acredito que para o Vinícius foi absolutamente decisivo o fato de alguém cortar essa teia que o prendia à vida. Ele brincava com a idéia de morrer como uma saída para as crises de angústia e desespero. Mas tinha laços fortes com a vida que podiam resgatá-lo. Sem aquele último estímulo ele não teria tido coragem para se matar, como não teve das outras vezes. Talvez a polícia tenha se sentido impotente frente ao tamanho da tarefa a fazer. Porque realmente seria muito difícil encontrar e responsabilizar essa gente. Sentiram-se impotentes e chegaram a essa conclusão brilhante. Que o culpado era o suicida.

ÉPOCA – Por que ele se suicidou de uma forma “assistida”? Ele chegou inclusive a botar uma foto das churrasqueiras com fogo na internet. O que significou esse suicídio ao vivo pela internet? Corso – Ele é de uma geração que se criou dentro da internet. Essa é a questão que foi subestimada por mim – e eu não posso falar por eles, mas talvez tenha sido subestimada pelos pais também. Com 11 anos ele freqüentava grupos de discussão onde se apresentava tendo 26. E ele passava por 26 anos. Esse menino era superdotado, extraordinariamente inteligente, e cresceu numa família muito estimuladora, intelectualmente rica, com um pai e uma mãe muito cultos. Ele sugou essa cultura rapidamente. O Vinícius herdou do pai a profundidade política, social, e da mãe a perspicácia emocional. Tinha o que poderíamos chamar de excesso de lucidez. Mas sem condições de suportar essa carga por causa da pouca idade. Era um menino que tinha uma capacidade de compreender profundamente o mundo, mas não tinha a consistência emocional para dar conta do que via, do que decodificava. Reduzido a si mesmo, via-se deformado, feio, pequeno. Ele tinha uma hipersensibilidade ao mundo que lhe fazia bastante mal. Como se ele vivesse um pouco o noticiário, o mundo como ele acontece. Era uma caixa de ressonância do mundo.

ÉPOCA – Isso significa que ele era mais afetado pelas grandes tragédias do mundo ou pelas pequenas misérias ao seu redor?
Corso – Ele sofria com a brutalidade do mundo. Este era um tema caro para ele: sofria vendo as pessoas sendo humilhadas, sofria com a hierarquia. Ele tinha uma compreensão hiperbólica do mundo. Era como se para ele a escravidão não tivesse acabado no Brasil. Ele ficava imaginando como era a vida da empregada, do porteiro. Ele fica tentando imaginar como essa vida era e como eles cabiam nessa vida que ele achava pequena e estreita. E como sofriam por isso.

ÉPOCA – Ao mesmo tempo, ele é descrito por algumas pessoas do colégio como alguém que não se relacionava muito com os outros, alguém que se dava bem com todo mundo e ao mesmo tempo com ninguém, que vivia numa espécie de mundo próprio.
Corso – Houve várias fases dele. Ele teve dois tratamentos comigo. O primeiro foi iniciado quando ele tinha 11 anos. Ele me procurou por uma certa fragilidade que tinha. Já tinha esse desencaixe, essa precocidade extraordinária. É difícil viver numa sala de aula quando você entende muito o que está acontecendo. Imagina se você fosse adulta e tivesse de voltar para o primeiro ano. Aqueles empurrões e cotoveladas, aquelas maldadezinhas. Ele estava sempre um pouco à frente do seu tempo e isso fazia diferença para os colegas dele. Ele ficou comigo dos 11 aos 13 anos na primeira vez. Fez progressos muito importantes e saiu bem. Nessa época ele se aproximou muito do pai e ficou mais extrovertido. Melhorou também na sala de aula, ficou mais popular, ganhou até um apelido, Pipoca. Eu tinha notícias esparsas dele e ele estava bem. Em 2004 foi um período ótimo, em 2005 não foi tão bom e ele retornou.

ÉPOCA – Desde quando você sabia que havia risco de suicídio e que tipo de providência foi tomada?
Corso – Eu soube desde o começo. Ele disse na primeira vez que me procurou que havia pensado em se matar. Isso no segundo tratamento. Eu mantive isso comigo até sentir que a situação poderia escapar das minhas mãos. Então eu comuniquei aos pais. E nós combinamos que ele ficaria em internação domiciliar. Nesses casos sempre há alguém com o paciente, ele não fica sozinho em momento algum. Os pais já tinham desconfiança sobre isso, entenderam logo e passaram a não desgrudar dele. Mas enquanto a gente cuidava dele, tinha alguém que puxava ele para baixo. Aí entrou o fator extra, que nós desconhecíamos. Não sabíamos que ele tinha alguém que o incentivava a achar que a vida não vale a pena. Ele havia me dito que entrava na internet para ver formas de suicídio, a gente discutiu muito sobre os suicídios que estavam ocorrendo no Japão. Mas eu não sabia que ele discutia abertamente o valor da sua própria vida na internet.

ÉPOCA – Ele era depressivo? Usava algum tipo de medicação?
Corso – Não usava. E eu não vejo razão para classificações aqui. Isso não é relevante para essa discussão ou para o público que está lendo a revista.

ÉPOCA – Por que ele dizia que queria se matar?
Corso – Ele não falava que queria se matar. Ele falava que era impossível viver, que não se sentia com forças para viver, o que é um pouco diferente de ter vontade de morrer. Ele tinha uma vontade de desaparecer, de que algo cessasse a dor constante que ele sentia.

Época - Há quanto tempo ele estava nessa internação domiciliar?
Corso – Começou dois meses antes do suicídio.

ÉPOCA – Vocês sabiam que havia risco de suicídio, você e a família estavam cuidando dele, mas ao mesmo tempo havia um outro enredo se desenrolando a partir da internet, dentro de um mundo virtual. Como é isso?
Corso – Este foi o erro, o engano. Subestimar o papel da internet. Eu uso a internet, mas eu não a habito, eu não moro dentro da internet. Tem gente que mora.

ÉPOCA – Ele morava dentro da internet?
Corso – Ele habitava nela. Não vamos achar que a internet é uma coisa ruim a priori. Ele construiu a obra dele na internet, a troca de músicas que resultou no disco interessante que ele fez foi graças à internet. A internet pode ser extraordinariamente interessante, ela possibilita encontros que não estavam colocados antes. É o paraíso dos solitários, das pessoas tímidas. Tem proporcionado a construção de laços entre pessoas distantes. Agora, por outro lado, a internet possibilita também o contato de outro tipo de coisa que nunca aconteceria sem ela. A internet não criou nenhum tipo de doença mental, todas elas pré-existiam. Mas ela possibilita o incremento de certas morbidades por uma possibilidade de compartilhar e, a partir disso, criar uma identidade. Um exemplo é o que acontece com a anorexia, uma doença gravíssima, muitas meninas morrem disso. Antes da internet, uma não encontrava a outra. Com a internet o que elas conseguem? Trocam idéias sobre a anorexia não no sentido da auto-ajuda, mas da manutenção da patologia. E da glamourização dela. Encontram alguém que as apóia em permanecer nessa atitude doentia, a construir uma identidade a partir dela. Outro exemplo: imagina um sujeito pedófilo numa cidadezinha no interior onde provavelmente ele era o único pedófilo. Antes ele era uma aberração aos olhos da comunidade e dele mesmo. Na medida em que ele consegue compartilhar isso com outras pessoas na internet e descobre que há um monte de gente como ele, isso faz com que tenha coragem de se pensar enquanto grupo. Não como doente, mas como um estilo. A internet possibilita uma série de coisas extraordinárias, mas também uma série de coisas doentias.

ÉPOCA – E como isso funciona no caso do suicídio?
Corso – A internet tem de tudo, mas ela ainda é muito fraca e medíocre no seu conteúdo. Com exceções, ela é muito tola, não tem profundidade para quase nada. Ela é o livro de areia que o (Jorge Luis) Borges imaginou, mas sem profundidade, onde uma página não tem nada a ver com a outra. Vale lembrar que, no conto, ele ficou horrorizado e abandonou o livro. É isso que não devemos fazer. Um dos problemas da internet é também que a nossa geração não está lá da mesma maneira, não tem uma geração anterior a que está na internet. Ainda não há uma tradição ali dentro, a internet é raramente habitada por pessoas com um pouco mais de maturidade. Os jovens estão muito sós nesse mundo virtual, meio entregues à própria sorte. Então, além de empobrecedor, o ambiente é também mais frágil e mais perigoso pela falta de adultos.

ÉPOCA – E o que podemos fazer? Nós vivemos numa espécie de esquina histórica. Os pais de hoje pertencem à geração que só conheceu a internet depois de adultos. Seus filhos habitam a internet desde a infância. Os pais vêem os filhos dentro do quarto, sentados, sozinhos, digitando no computador, e ficam tranqüilos porque não poderiam estar mais seguros: dentro de casa e sozinhos. Mas naquele momento os filhos estão no mundo, sujeito a pedófilos e perversos de todo o tipo, e sem pai nem mãe. Mesmo os pais que conhecem os riscos estão impotentes porque não dominam os códigos desse mundo virtual. Provavelmente quando essas crianças e adolescentes forem pais, esse gap geracional, pelo menos no sentido da internet, não vai mais existir. Mas hoje, agora, o que podemos fazer?
Corso – Eu resolvi dar essa entrevista para que se comece uma discussão sobre isso. Não acredito em controle, acho que a internet é incontrolável. É algo como tentar proibir o papel. É inócuo, inútil, estúpido. Mas ela está aí e a gente vai ter de inventar formas para lidar com isso. Acho que o único jeito é a velha teoria de sempre. Se você quer cuidar de seus filhos, fique perto deles, tenha consciência do abismo que separa as gerações na forma de se relacionar com esse meio de comunicação. Procure dialogar com eles sobre o que ocorre também em seu mundo virtual. Para a nossa geração não está ocorrendo nada sério ali, mas para os mais jovens amores, destinos e até a vida e a morte podem estar sendo decididos na internet. Essa diferenciação entre o real e o virtual não é tão radical para eles. Há um portal em que eles transitam, lá onde nós somente vemos uma linha divisória, uma parede. É como a TV. A TV pode ser muito nefasta se ela for a única via de acesso ao conhecimento de uma criança. Mas se ela ficar diluída com a escola, com os pais, ela é um estímulo a mais. Quem vai ficar mais exposto à internet é quem tem menos laços reais com o mundo, quem constrói laços prioritariamente virtuais. O Vinícius estava num momento de muita fragilização com o mundo. Então ele se voltou para a internet. Embora ele também sofresse na internet, nos grupos de discussão. Não era uma vida fácil nem no mundo virtual. Mas a internet é um bom mundo para quem tem problemas com o corpo. O corpo não está ali, ali é só a palavra. Para quem é só corpo a internet não funciona.

ÉPOCA – Por que você acha que alguém faz um site de suicídio, com métodos para tirar a própria vida? É possível construir um perfil desse tipo de pessoa?
Corso – É gente doente que exerce sua morbidez, seu sadismo. Eu acredito que deve ter algum grau de sinceridade nessa negatividade do mundo. O problema é que eles não sabem com quem estão falando. Não têm consciência da fragilidade das pessoas. Esse é o drama da internet. Acho que nenhum adulto conseguiria chegar para um adolescente e dizer, cara a cara: a vida não vale a pena, te mata. A internet tem um valor moderno importante que é a abolição das diferenças. Todo mundo tem o mesmo peso lá dentro. Então as opiniões mórbidas, idiotas, têm um peso muito grande também. Não há uma hierarquia de informação, vale tudo. Acho que estamos num período inicial da internet, que talvez seja o período mais pobre, onde você pode encontrar uma opinião séria ao lado de grandes besteiras. Para certos medíocres é um paraíso, porque lá é o único lugar em que sua voz é ouvida. Por exemplo, para cada site careta, mal escrito, falando que drogas trazem problemas, você encontra uma centena de depoimentos glamourizando as drogas. Ou seja: você perde de goleada. Talvez a questão seja entrar na internet para dizer o que achamos sobre algumas questões, com uma linguagem e um conteúdo consistente. Precisamos aprender a usar a internet, habitá-la. Talvez a gente tenha de andar nessas ruas escuras. Talvez este seja um movimento necessário. Talvez não dê para esperar pela geração seguinte. Talvez tenhamos de entrar para ajudar quem está lá. A nossa falta de saber técnico de entrar não desqualifica toda a outra sabedoria que a vida nos deu para sair destas ciladas mais banais que a internet coloca. Na verdade os discursos sobre estas coisas são muito bobos, são filosoficamente muito pobres. Você não encontra um (Albert) Camus falando sobre suicídio. Só encontra idiotas falando sobre suicídio. Aliás, a gente poderia perguntar para esses sujeitos: “já que a morte é tudo de bom, por que você não se mata antes?” Acho que essa pessoa faria bem menos falta ao mundo do que o Vinícius.

ÉPOCA – Você diz que subestimou o papel da internet. Mas sabendo o que sabe hoje, se tivesse um paciente exatamente igual ao Vinícius, o que você poderia fazer?
Corso – Eu acho que um psicanalista, às vezes, tem de andar de mão com o paciente no inferno. Só que eu não sabia da totalidade desse inferno. Acho que se eu soubesse eu teria ido lá junto. Teria vivido nessa comunidade. Era preciso ter entrado, ou eu ou a família dele, nesses sites, nesses chats. Era preciso ter ido atrás dele. Nós achávamos que ele estava bem cuidado. Que naquele momento de crise mais aguda ele estava sob a nossa influência. Mas tinha um inimigo na trincheira que a gente não enxergou.

ÉPOCA – Esse tipo de pessoa manipula que tipo de sentimento num adolescente?
Corso – De uma forma simplificada, banal e rasteira, a idéia de suicídio é uma idéia de negação do mundo. É fácil, portanto, tentar vender a idéia de aliar o suicídio a uma recusa radical do mundo. E essa recusa radical do mundo é em si um pouco simpática. Desse mundo que está aí fora, que não fui eu que fiz, eu não quero saber. Ele está todo errado. Eu recuso ele em bloco, eu vou-me embora. Dessa idéia inicial, que tem um aspecto até um pouco contestatório, interessante, para um passo mórbido, não há muita distância. É isso que começa a fascinar alguns jovens. E acontece num momento da vida em que para crescer é preciso sair do olhar dos pais. Além disso, não vivemos um bom momento civilizatório. Há uma geração que está se criando sem utopia e sem religiões. É complicado. As religiões dão razões para estar no mundo, critérios do modo correto de fazê-lo, embora o preço seja uma alienação muito grande. As utopias também. Mas a ausência delas pode ser bastante dura para um adolescente. Um adolescente se dá conta da sordidez e da dureza do mundo e praticamente não encontra muitas razões para entrar na arena. Uma psicanalista francesa, Françoise Dolto, falava da adolescência como “complexo da lagosta”, porque estes animais soltam a carapaça para poder crescer e secretar uma nova carapaça. Enquanto isso ocorre eles estão vulneráveis, desprotegidos. O adolescente é mais ou menos assim. Há um momento da vida que para poder crescer a gente perde as defesas momentaneamente até constituir novas. E é nesse momento de enorme vulnerabilidade que este “por que não se mata” é escutado como uma grande sugestão. O que é dito nesses sites é que vale a pena morrer. E o que nos mantêm vivos às vezes é mais tênue do que a gente imagina. O que nos mantêm vivos é uma rede de pessoas que dependem de nós e que a gente depende delas. Uma rede amorosa, afetiva, de compromisso. Essa rede de suicídio é uma outra rede, que diz que não precisa estar aqui. Ela faz um contraponto a este coletivo que diz “viva”. É um coletivo que diz “morra”. O Vinícius precisou de ajuda para se suicidar. E essa voz foi muito sedutora.

ÉPOCA – Você acha que ele gostaria desse CD lançado no mundo real?
Corso – Eu tenho certeza. Ele tinha toda uma dinâmica de busca de reconhecimento e é isso que o CD significa. Postumamente ele conseguiu o lugar no mundo real pelo qual tanto brigava.

ÉPOCA – Ele deixou o CD como legado?
Corso – Creio que esse mérito é dos pais dele. O CD não estava organizado. Eu mesmo tinha algumas músicas no meu computador. Foi o pai que organizou o CD e o fez com a ajuda de alguns amigos. Este CD é um re-encontro do pai dele com ele e acho bem corajoso o que ele está fazendo. A resposta mais comum nesses casos é a depressão e o apagamento, o esquecimento do filho. Eu vi tantos casos em que os filhos são cortados das fotos, como se nunca tivessem existido, como se estes pais nunca tivessem passado por isso. Acho que é uma atitude digna, corajosa, bem-vinda para o Vinícius, para os pais, para a música, para todo mundo.

ÉPOCA – Perder um paciente deve ser terrível. É uma sensação de fracasso?
Corso – É uma sensação completa de fracasso, que coloca em xeque tudo o que a gente pensou e estudou. A gente segue falhando, mais do que gostaria, mais do que aprende a admitir. Então é mais uma derrota. Mas nem todas as derrotas são tão catastróficas como essa. E quando isso acontece a missão não terminou, porque temos que cuidar de quem ficou. A gente está arrasado, mas o jogo não acabou.

ÉPOCA – Como foi viver essa situação?
Corso – Foi pior depois. Eu tenho um ar-condicionado no cérebro para questões de emergência. Depois é que vem o rebote. Eu tinha de suportar, eu tinha de ajudar os pais. Se eu estava arrasado, imagina como eles estavam. Eles também estavam destruídos, mas numa outra potência. Eu tenho uma filha da idade do Vinícius e consigo me colocar no lugar deles, consigo imaginar o tamanho do rombo que essa morte deve ter feito. E há um grau de responsabilidade nisso. Era eu que estava ali. E eu falhei.

ÉPOCA – Mas há um limite...
Corso – Sim, há um limite, há uma onipotência. A gente não pode ganhar todas, curar todos. Mas era eu que estava lá quando a coisa não funcionou. E isso é duro. Se os pacientes não são um número, isso é muito duro. O Vinícius era um paciente diferente. Como ele era extraordinariamente inteligente, ele dizia coisas desconcertantes, que nem todas as pessoas conseguem nos dizer. Então fazia uma marca. Era um desafio analisar o Vinícius. Como é que você consegue passar o valor da vida para um sujeito muito inteligente, sem ser piegas? Eram discussões praticamente filosóficas sobre o valor da vida. Eu tenho saudades dele. Durante meses eu pensava no Vinícius todos os dias. Em algum momento do dia me vinha algo que ele tinha falado.

ÉPOCA – Em algum momento deu vontade de desistir de ser analista?
Corso – Sim. E não só por causa dele. Um analista é um sujeito que tem de ter uma dose extra de resistência à frustração para suportar sua própria impotência. É muito difícil mudar as pessoas. Mesmo quando elas precisam desesperadamente disso.

ÉPOCA – E por que você nunca desistiu?
Corso – Por que ainda não senti que inventaram algo melhor que a psicanálise. Tem aquela frase do (Winston) Churchill que eu gosto muito, em que ele diz que a democracia é a pior forma de governo excetuando todas as outras. Pois a psicanálise é a pior forma de terapia excetuando todas as outras. Se os nossos resultados são parcos, eles ainda são melhores que todos os outros, são mais humanos. A verdade é que a gente vive num estágio curioso da civilização. A gente tem conquistas tecnológicas extraordinárias, avanços, mas as ciências que cuidam do homem são muito precárias nas suas ferramentas de análise, de resolução de problemas no âmbito pessoal.

ÉPOCA – Mudou seu jeito de lidar com a internet?
Corso – Mudou. Eu tenho tentado aprender com as minhas filhas e com meu genro a entrar mais, saber como é esse mundo e como ele funciona. Mudou muita coisa. Eu tenho de conviver com um buraco dentro de mim, como com qualquer perda que a gente tem. Os psicanalistas apanham bastante. E algumas cicatrizes são para sempre.

Fonte da entrevista: Revista Época - www.epoca.com.br

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

domingo, 29 de junho de 2008

Amores herdados[1]

Iza Maria de Oliveira

O que herdaste de teus pais

Adquire, para que o possua. (Goethe)

Somos herdeiros do amor-paixão romântico, tal como foi concebido no romantismo. Esta herança é relativa a um núcleo amoroso fortemente inscrito nas subjetividades contemporâneas. É certo que ocorreram alterações, no transcorrer do tempo, nas configurações amorosas desde aquele movimento cultural e artístico, inaugurado pela cultura européia do século XIX, que cria a noção de amor romântico como um sentimento profundo, misterioso, nobre e sublime, contendo um objeto idealizado e sua realização se efetivando no plano do individual.

É importante situar isso, pois a noção de amor romântico é historicamente construída e relacionada a uma estrutura social e cultural estabelecida. O psicanalista Jurandir Costa, em seu livro, “Sem fraude, nem favor: estudos sobre o amor romântico” (Rocco, 1999), refere que aquele amor é um complexo emocional profundamente enraizado em nossa cultura. Para ele, poucas pessoas são capazes de duvidar da "universalidade" e da "naturalidade" deste amor culturalmente oferecido como algo sem o que nos sentiremos profundamente infelizes. Assim, sugere que uma crítica à idealização do amor-paixão romântico, para existir chances de propor uma vida sexual, sentimental ou amorosa mais livre.

Neste `núcleo amoroso` herdado se encontra o ideal de um amor bem sucedido, em que comporta uma idealização no objeto amoroso. Ou seja, que o parceiro amoroso responda às expectativas e satisfações do sujeito. Para essa configuração, Freud atribuiu um componente narcísico das relações amorosas. Um dos impasses nos laços conjugais se refere a uma demanda voraz no formato de um imperativo cultural de satisfação absoluta na vida afetiva e erótica. O reverso disso é, na maioria dos casos, uma frustração que pode se estender, imaginariamente, a outras instâncias da vida.

Reinventar versões do amor parece ser a função em nossos tempos, pois como indica Jurandir Costa, o modo de amar no romantismo é só um entre os possíveis. E se o ideal do amor bem sucedido já não encontra suporte na realidade afetiva dos sujeitos modernos, é possível sofrer menos quando não se pode amar conforme o figurino romântico, operando com outras premissas no laço amoroso.

Desta forma, numa referência à citação (e tradução) de Goethe, Aquilo que herdastes de teus pais, conquista-o para fazê-lo seu", indica a possibilidade de reinvenção desta herança do amor romântico. Pois, “Adquirir” não remete a um usufruir desmensurado, tampouco a uma posição passiva diante de um legado. O herdeiro perspicaz não é aquele que tenta perpetuar um mandato de idealização. Um “herdeiro legítimo” tem, portanto, esta difícil missão de reinventar a partir de um legado. Neste caso, um legado do amor-paixão romântico.


[1] Publicado na Coluna, “Descronificando”, Jornal Hora H, 13 de junho de 2008.

Amores silenciosos

CONTARDO CALLIGARIS


A gente se declara apaixonado porque está apaixonado ou pelo prazer de se apaixonar?

FAZER E RECEBER declarações de amor é quase sempre prazeroso. O mesmo vale, aliás, para todos os sentimentos: mesmo quando dizemos a alguém, olho no olho, "Eu te odeio", o medo da brutalidade de nossas palavras não exclui uma forma selvagem de prazer.
De fato, há um prazer na própria intensidade dos sentimentos; por isso, desconfio um pouco das palavras com as quais os manifestamos. Tomando o exemplo do amor, nunca sei se a gente se declara apaixonado porque, de fato, ama ou, então, diz que está apaixonado pelo prazer de se apaixonar.
Simplificando, há duas grandes categorias de expressões: constatativas e performativas.
Se digo "Está chovendo", a frase pode ser verdadeira se estamos num dia de chuva ou falsa se faz sol; de qualquer forma, mentindo ou não, é uma frase que descreve, constata um fato que não depende dela.
Se digo "Eu declaro a guerra", minha declaração será legítima se eu for imperador ou será um capricho da imaginação se eu for simples cidadão; de qualquer forma, capricho ou não, é uma frase que não constata, mas produz (ou quer produzir) um fato. Se eu tiver a autoridade necessária, a guerra estará declarada porque eu disse que declarei a guerra. Minha "performance" discursiva é o próprio acontecimento do qual se trata (a declaração de guerra).
Pois bem, nunca sei se as declarações de amor são constatativas ("Digo que amo porque constato que amo") ou performativas ("Aca- bo amando à força de dizer que amo"). E isso se aplica à maioria dos sentimentos.
Recentemente, uma jovem, por quem tenho estima e carinho, confiava-me sua dor pela separação que ela estava vivendo. Ao escutá-la, eu pensava que expressar seus sentimentos devia ser, para ela, um alívio, mas que, de uma certa forma, seria melhor se ela não falasse. Por quê?
Justamente, era como se a falta do namorado (de quem ela tinha se separado por várias e boas razões), a sensação de perda etc. fossem intensificadas por suas palavras, e talvez mais que intensificadas: produzidas.
É uma experiência comum: externamos nossos sentimentos para vivê-los mais intensamente -para encontrar as lágrimas que, sem isso, não jorrariam ou a alegria que talvez, sem isso, fosse menor. Nada contra: sou a favor da intensidade das experiências, mesmo das dolorosas. Mas há dois problemas.
O primeiro é que o entusiasmo com o qual expressamos nossos sentimentos pode simplificá-los. Ao declarar meu amor, por exemplo, esqueço conflitos e nuances. No entusiasmo do "te amo", deixo de lado complementos incômodos ("Te amo, assim como amo outras e outros" ou "Te amo, aqui, agora, só sob este céu") e adversativas que atrapalhariam a declaração com o peso do passado ou a urgência de sonhos nos quais o amor que declaro não se enquadra.
O segundo problema é que nossa verborragia amorosa atropela o outro. A complexidade de seus sentimentos se perde na simplificação dos nossos, e sua resposta ("Também te amo"), de repente, não vale mais nada ("Eu disse primeiro").
Por isso, no fundo, meu ideal de relação amorosa é silencioso, contido, pudico.
Para contrabalançar os romances e filmes em que o amor triunfa ao ser dito e redito, como um performativo que inventa e força o sentimento, sugiro dois extraordinários romances breves, de Alessandro Baricco, o escritor italiano que estará na Festa Literária Internacional de Parati, na próxima semana: "Seda" e "Sem Sangue" (ambos Companhia das Letras).
Nos dois, a intensidade do amor se impõe com uma extrema economia de palavras ("Sem Sangue") ou sem palavra nenhuma ("Seda"). Nos dois, o silêncio permite que o amor vingue -apesar de ele não poder ser dito ou talvez por isso mesmo.
No caso de "Seda": te amo em silêncio porque te encontro ao limite extremo de uma viagem ao fim do mundo, indissociavelmente ligada a um outro, e nem sei falar tua língua.
Você me ama em silêncio porque sou outro: uma aparição efêmera, uma ave migrante.
No caso de "Sem Sangue": te amo, e não há como falar disso porque te dei e te tirei a vida. E você me ama pelas mesmas razões pelas quais poderia e deveria querer me matar (os leitores entenderão).
Nos dois romances, a ausência da fala amorosa acaba sendo um presente que os amantes se fazem reciprocamente, uma forma extrema (e freqüentemente perdida) de respeito pela complexidade de nossos sentimentos e dos sentimentos do outro que amamos.

ccalligari@uol.com.br

sábado, 21 de junho de 2008

sexta-feira, 30 de maio de 2008

terça-feira, 27 de maio de 2008

A FORÇA DAS PALAVRAS DE UM PAI




Nossos pais é que são uma incógnita para nós, é neles que buscamos, nem que seja uma migalha de discurso, que empreste uma missão para a nem sempre fácil tarefa de viver. O livro "O Conto do Amor", de Contardo Calligaris, é sobre essa busca

Contardo Calligaris estréia na ficção: lançou, pela Companhia das Letras, O Conto do Amor (128 pág., R$34,00). Já estamos acostumados aos seus artigos semanais na Folha de S. Paulo, onde consegue, em tão exíguo espaço, a proeza de fazer um pequeno ensaio. De qualquer assunto, sempre extrai um novo sentido, nos surpreende com uma ou duas voltas a mais no raciocínio que já temos.

Na largada, este livro lembra a arquitetura de Quase Memória de Carlos Heitor Cony. Naquele, o filho recebe uma caixa que só poderia ter sido ser mandada pelo pai, mas como, se o pai está morto? A partir desse mote, abrem-se inúmeras lembranças sobre quem foi esse homem, e que marcas deixou no filho. Já no livro de Calligaris, os últimos dias de vida do velho médico dão ocasião a uma das raras conversas que ele tem com o filho, a personagem Carlo Antonini. Só que o pai, talvez movido pela senilidade, profere um aparente disparate: ele acredita ter sido, numa outra vida, um auxiliar do pintor renascentista Sodoma. Após a morte, restam os diários do pai e esse fiapo de conversa delirante. Desconfiando de que seja uma afirmação insana, mas acreditando que ali se esconda alguma verdade, Antonini mergulha no passado de seu pai.

Carlo e seu pai são como a maioria de nós, de longe se amam, de perto se desencontram. A expressão do amor de um filho pelo pai, e do pai pelo filho, é uma das questões abertas de nosso tempo. Nessas relações, o silêncio impera, sempre parece ser maior do que quaisquer palavras. As perguntas chegam tarde, as explicações não colam. Quando algo finalmente está sendo dito, julgamos ser tarde, ou então cedo demais. É um amor que não acha encaixe, não sendo, apesar disso, menos intenso e consistente, apenas é meio desajeitado, e raramente encontra uma via fácil, direta.

Casamento e mortalha, no céu se talha. Esse é o dito que tenta neutralizar o fato de que somos fruto de um acaso. Nem os céus nem ninguém tinham garantias de que nossos pais se encontrariam, se amariam (na melhor das hipóteses) e que disso resultaríamos nós. Infelizmente, tampouco são os céus que estão cuidando para que nossa existência dure o tempo necessário para os seus desígnios, por isso, convém olhar quando se atravessa a rua. Essa expressão visa inverter a ausência de sentido da existência e da finalidade de cada um de nós. Existimos somente pelo acaso que reuniu nossos pais. Por causa disso que (mesmo sabendo dessa falta de razão), nos impelimos a investigar o que foi que os uniu, a descobrir quem eles foram, como foi que se amaram, em que outras tramas amorosas se meteram, o que lhes faltou viver...

Nessas frestas procuramos saber algo sobre nós e, não raro, encontramos, pois as pistas estão ali. Não queremos saber o que sempre nos disseram que eles eram, e o que queriam que fôssemos, indagamos o subtexto, os pequenos ou grandes segredos que toda família tem. Esse tipo de investigação geralmente ocorre após a morte dos pais, não necessariamente a morte física, mas sua progressiva diminuição no papel real da nossa vida. Um filho está interessado exatamente no que foi esquecido, silenciado, no que ficou pendente, ou que causou arrependimento, saudade, mágoa, ou ainda, um secreto orgulho nos seus pais. É quando eles de fato morrem que vamos ousar as maiores perguntas, aquelas que o pai não iria responder, porque, na verdade, é a si mesmo que o filho indaga: o que farei com esta herança de uma vida que ainda pulsa em mim, mas que se foi?

Essas perguntas sobre os pais nos movem, mas, em geral, nos incitam apenas a uma jornada interior. No livro de Calligaris, ao contrário, essa busca ocorre do lado de fora, como uma investigação real, cheia de andanças e descaminhos. Tal como Carlo Antonini, por melhor que um pai tenha sido, queremos encontrar seus furos, não cessamos de lhe atribuir algum mistério, algo no qual transcenda a vida que testemunhamos. Ou então, supomos que, antes do nosso nascimento, algo de muito empolgante tenha acontecido, afinal, nada como ser herdeiro de alguém interessante para valorizar nossas origens, das quais estamos sempre meio queixosos, não importa o que tenham nos oferecido.

É atraente a idéia de que nossa existência guarde um enigma, como se fôssemos uma mensagem cifrada lançada pelos pais para o futuro, tendo um destino que um dia aconteceria e revelaria nosso sentido. Assim, a vida de cada um parece ter uma razão que deve ser indagada aos que a inauguraram. Na verdade, é o inverso: nossos pais é que são uma incógnita para nós, é neles que buscamos, nem que seja uma migalha de discurso que empreste uma missão para a nem sempre fácil tarefa de viver. O livro é sobre essa busca, Antonini decifra e encontra uma nova faceta do pai. Bem, lapidar um pai é uma das tarefas da existência, uma das razões de uma análise, um dos trabalhos da ficção, e é sempre bom ver alguém se divertindo com isso. Mas o livro traz muito mais, confira.

MÁRIO CORSO | Psicanalista

24 de maio de 2008 | N° 15611AlertaVoltar para a edição de hoje

segunda-feira, 26 de maio de 2008

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Entrevista: Charles Melman - A psicanálise nao promete a felicidade

Le Figaro


Charles Melman, colaborador de Jacques Lacan, lança seu livro no Rio de Janeiro


O psicanalista francês Charles Melman foi um dos colaboradores mais próximos de Jacques Lacan (1901-1981), o principal herdeiro de Sigmund Freud na França. Melman chegou ao Rio de Janeiro nesta quinta-feira, dia 24, e participa na manhã de sexta do seminário "E o que é que ele quer, o psicanalista?", realizado no Hotel Glória. No final da tarde autografa seu novo livro, A Prática Psicanalítica Hoje. Antes de viajar, concedeu por telefone a seguinte entrevista ao repórter Ronaldo Soares, da sucursal carioca de VEJA.
Veja — Por que a psicanálise vem perdendo terreno para terapias que prometem resultados imediatos?
Melman — Porque ela não busca nenhum tipo de cura, não se propõe a isso. Está, portanto, na contramão da medicina, cuja história é rica em experiências baseadas na cura, com métodos variados. Alguns desses métodos, até pelos efeitos de sugestão, não são ineficazes. Mas é preciso saber se nós preferimos os métodos fundados sobre a sugestão ou se consideramos que é melhor privilegiar a livre atitude e o pensamento de cada pessoa, e assim estimular nela sua autonomia de julgamento. Nos períodos de crise moral, como o atual, proliferam os métodos que prometem a cura. Aos que escolhem esse caminho, só me resta desejar boa sorte.

"A última contribuição realmente original
ao pensamento de Freud foi dada por Lacan, que já morreu há quase
30 anos"



Veja —
Além de espaço, a psicanálise perdeu prestígio?
Melman — Ela perdeu prestígio junto aos intelectuais, porque os que se inspiram em Freud não conseguiram dar prosseguimento de forma válida e original ao trabalho dele. Desse vazio surge a impressão de que Freud está ultrapassado. A última contribuição realmente original ao pensamento de Freud foi dada por Lacan, que já morreu há quase 30 anos (em 1981). Ele deixou ainda muito por fazer para que possamos dar conta das mudanças que estamos presenciando.

Veja — O senhor concorda que há uma excessiva utilização de psicotrópicos atualmente?
Melman — A saúde hoje é algo que se calcula em bilhões de dólares. É compreensível e até inevitável que os laboratórios estimulem o alto consumo de medicamentos como os antidepressivos. A França, por exemplo, tornou-se um grande consumidor desses produtos justamente em virtude das ações que os representantes dos laboratórios desenvolvem junto aos consultórios médicos. A questão é que a hiper-medicalização contém muito mais riscos do que vantagens. No caso das crianças, por exemplo, isso fica evidente. Sobretudo no que diz respeito ao uso precoce, recomendado pelos laboratórios, de neurolépticos (inibidores das funções psicomotoras). Esses medicamentos vêm sendo usados nas crianças para tratar distúrbios de personalidade ou para combater problemas como insônia ou falta de apetite, entre outras coisas. Trata-se de algo absolutamente condenável, com implicações nefastas tanto sobre o desenvolvimento quanto sobre o estado físico da criança. Outra conseqüência grave da hiper-medicalização é a predisposição do indivíduo para desenvolver dependência química. Primeiro, de remédios. Mas em seguida, possivelmente, de produtos fora do mercado legal. Com isso, poderemos chegar ao ponto em que a dependência vai parecer uma situação absolutamente normal, porque em muitos casos terá começado na infância.

Veja — O Prozac e as idéias de Freud podem conviver harmoniosamente?
Melman — Eles vivem juntos. Às vezes de maneira harmoniosa e outras, não. No primeiro caso, devemos lembrar que Freud sempre pensou que o processo psíquico tinha um suporte neuro-hormonal. Ele esperava que a ciência descobrisse esse processo. Produtos como o Prozac agem sobre esses mecanismos neuro-hormonais e podem, então, levar a uma modificação do comportamento. Outra abordagem que mostra essa harmonia é lembrar que todos nós, assim como o próprio Freud na juventude, já sonhamos com a existência de uma panacéia de medicamento que dariam conta de todas as dores e todas as dificuldades. O Prozac se apresenta um pouco assim. Mas — e é aí que a harmonia desaparece — será que devemos apostar num procedimento que vai tratar o conjunto dos problemas psíquicos pelas drogas? Ou devemos continuar a levar em conta, primeiramente, a livre escolha do sujeito e, em segundo lugar, o próprio papel do corpo? Nesse sentido, um produto como o Prozac desencadeia um curto-circuito.

Veja — Como assim?
Melman — Dou um exemplo. Digamos que surja amanhã uma droga que, agindo sobre os centros cerebrais, produza um prazer sexual bem superior ao que se pode obter com o corpo. O que vamos preferir? Isso ou um acesso ao prazer sexual que continua a passar pelo corpo, mesmo não tendo a mesma qualidade do que pode ser proporcionado pela droga que atua diretamente sobre o cérebro? Eis o tipo de questão que se coloca com o uso do Prozac.

"Pela primeira vez a instituição familiar está desaparecendo, e as conseqüências são imprevisíveis."



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Para que serve a psicanálise nos dias de hoje, quando se pode contar com tantos recursos destinados a proporcionar bem-estar psíquico?
Melman — A psicanálise permite a você se debruçar sobre os problemas reais e incontornáveis da existência. Não sobre os problemas ligados a sua infância, ao seu meio social, às neuroses em geral que interromperam seu desenvolvimento psicológico. Ela não propõe uma cura de dificuldades que são próprias da vida social, como as ligadas à vida do casal, à relação entre pais e filhos, etc. Mas permite colocar essas dificuldades em seus devidos lugares e, ao mesmo tempo, tratá-las de outra forma. A psicanálise não terá jamais a pretensão de prometer a felicidade. Mas também não a proibirá a ninguém. Ela convidará cada um a buscar o que pode ser a felicidade para si.

Veja — Quem procura psicanálise atualmente?
Melman — Fico surpreso quando constato que, se há uma clientela interessada e engajada na psicanálise hoje em dia, é a dos jovens dos 18 aos 30 anos. Eles não procuram a psicanálise pelo fato de reprimirem seus desejos, mas principalmente porque não sabem o que desejam. É uma situação totalmente original em relação a Freud. Antes, a pessoa recorria à psicanálise porque não ousava realizar seus desejos. Hoje, principalmente no caso dos jovens, é por não saber o que desejar.

Veja — A que o senhor atribui essa mudança?
Melman — Nossos jovens foram criados em condições que promovem a busca rápida do prazer máximo e sem obrigações. É o meio social que propõe a eles essa maneira de agir em sociedade. O problema é que o tratamento dispensado ao desejo produz situações de dificuldades para os jovens. E isso os leva ao divã.

Veja — Que situações são essas?
Melman — Muitos jovens encontram dificuldade para desenvolver plenamente uma vida sexual. Parece paradoxal, porque hoje em dia o sexo é muito acessível. Mas na verdade essa facilidade leva à busca de uma vida sexual sem compromisso, que proporcione um prazer ocasional, como o cinema, a bebida ou a dança. Há aí uma mudança interessante, talvez uma tentativa de se proteger em relação ao compromisso que uma vida sexual pode evocar. A idéia é aproveitar sem se engajar, mas isso impõe uma questão: eles aproveitam plenamente? Esse é o fenômeno que chamei de nova economia psíquica. Ele é fundado sobre o princípio da busca imediata de prazer máximo, sem freios nem restrições. Esses momentos de prazer, que proporcionam uma satisfação profunda, são vividos mas não organizam a existência, nem o futuro. Ou seja, a existência é feita de uma sucessão de momentos sem nenhuma projeção no futuro, de momentos que podem desaparecer porque não terão continuidade. Isso é novo. E é o que está por trás do sucesso do mundo virtual proporcionado pela internet.

Veja — Por que o mundo virtual é tão atraente?
Melman — Porque é lúdico. É um mundo coerente com a maneira de viver dos jovens, não exige engajamento nem compromisso. Ali qualquer um pode viver uma série de vidas sucessivas sem nenhum compromisso definitivo. As pessoas querem se distanciar da realidade não porque ela seja assustadora ou sem-graça, mas porque ela implica sempre um limite. Além disso, a realidade requer uma identidade, um objetivo mais ou menos claro na vida, ao passo que esses exercícios virtuais não pressupõem nenhuma identidade, nenhuma perspectiva e ainda derrubam todos os limites, incluindo os do pudor e da polidez.

Veja — Por que atualmente os casamentos não duram? A vida a dois ficou inviável com o novo arranjo social que igualou os papéis do homem e da mulher?
Melman — Pelos padrões vigentes na sociedade atual, nos é recomendado ao longo da vida renovar os objetos dos quais nos servimos. Trocar de carro, de tapetes, de mobília, etc. As relações afetivas acabaram seguindo esse mesmo princípio, dos objetos descartáveis. Elas não resistem a esse apetite de rejuvenescimento e renovação da sociedade contemporânea.
Veja — Freud explica as famílias atuais?
Melman — Não acredito. Assistimos hoje a um acontecimento que talvez não tenha precedente na história, que é a dissolução do grupo familiar. Pela primeira vez a instituição familiar está desaparecendo, e as conseqüências são imprevisíveis. Fico surpreso que os sociólogos e antropólogos não se interessem muito por esse fenômeno. Nesse processo, podemos constatar que o papel de autoridade do pai foi definitivamente demolido. Antes, o menino tinha na figura do pai um rival e um modelo. Um rival que despertava nele o gosto pela competição, e um modelo na busca do prazer sexual. Já para a menina, tratava-se de um homem em quem ela procurava se completar. Hoje, com o declínio da figura paterna, nossos jovens podem estar menos propensos a batalhar pelo sucesso, a estabelecer um ideal de vida e até a descobrir o gosto pelo sexo. Nesse caso, a droga proporciona satisfações mais fáceis.

"Freud dizia que a força da religião reside no fato de que ela responde às perguntas que ninguém mais pode responder."



Veja —
É por isso que o consumo de drogas
não pára de crescer?

Melman — Eu diria que o apelo das drogas é tornar a existência cada vez mais virtual. Dito de outra forma, as drogas afastam as contingências da realidade. Trata-se de uma outra maneira de celebrar a virtualidade, diferente da proporcionada pela internet. As drogas permitem uma aventura psíquica, momentânea, uma trip, que supostamente não teria outras conseqüências.

Veja — Como a psicanálise vê as fobias na sociedade atual, que vive sob ameaças concretas, decorrentes de problemas ambientais e da escalada do terrorismo, por exemplo? É possível viver sem medo?
Melman — Pode parecer um paradoxo, mas isso acrescenta pimenta à existência, esse sentimento de que vivemos constantemente ameaçados. É um reencontro com os grandes medos antigos, os medos milenares, ligados a uma suposta proximidade do fim do mundo. O que é dramático é que hoje não se trata apenas de uma crença imaginária, mas sim de algo muito mais grave do que isso. Criamos armas de destruição em massa, por exemplo. Não sei se é possível nem se seria positivo acabar com o medo na sociedade. Ele, de certa forma, é um fator de proteção do sujeito, permite saber quem é o inimigo.
Veja — Como entra a religião nesse arsenal de enfrentamento das angústias humanas?
Melman — A religião sempre foi bem-sucedida em dar soluções às angústias do homem, porque consegue explicar o que é esperado de cada um. Explica o lugar da pessoa no mundo e o papel que ela tem a desempenhar. Freud dizia que a força da religião reside no fato de que ela responde às perguntas que ninguém mais pode responder. Em nome disso, muitos se sacrificam inclusive financeiramente, doando uma parte significativa de seu salário para garantir que um ser superior vai livrá-lo das ameaças trazidas por suas falhas. Isso é muito visível em um certo número de religiões novas, como as neopentecostais. Desse fenômeno, que vocês conhecem bem no Brasil, posso citar como exemplo a Igreja Universal do Reino de Deus. Fui assistir a um culto deles e fiquei muito impressionado. Estive numa catedral, acho que em Recife, produzida exatamente como a Disneylândia de Orlando, com jogos de luzes bem feitos e pastores que fazem o estilo rapazes bonitos e simpáticos. O prazer que o público tinha em cantar e dançar junto, em subir no altar para dar dinheiro, era incrível. E eram pessoas pobres, claro.

Veja — Freud marcou o pensamento no século 20. Ele sobrevive ao século 21?
Melman — Não tenho certeza. O mundo caminha na direção oposta à proposta pela psicanálise. Os remédios e, mais recentemente, os avanços da neurociência, permitem ações diretas sobre os processos cerebrais, deixando em segundo plano a subjetividade. Então a vida psíquica, e eu sou pessimista nesse aspecto, corre o risco de ser cada vez menos determinante sobre o destino de cada um. Freud chegou a escrever que um dia a ciência estaria em condições de quantificar, de isolar as substâncias responsáveis pelos eventos psíquicos. Mas os que estudam o cérebro não estão interessados em Freud.


Entrevista à Revista Veja - Ronaldo Soares