sábado, 5 de setembro de 2009

As mulheres de Atenas

Chico Buarque de Holanda deu a letra, ao lembrar “as mulheres de Atenas” em que devemos nos mirar. Afinal de contas, é para os braços “de suas pequenas”, “Helenas”, que os “bravos guerreiros” voltam. O poeta e compositor está certo: Helenas e outras figuras femininas, nem todas beldades como a esposa de Menelau, mobilizaram o imaginário do Ocidente desde sua expressão original, entre a poesia produzida pelos gregos da Antiguidade.

Comecemos, é claro, por Helena. A lenda conta que ela motivou a guerra entre os aqueus e os troianos, guerra que durou 10 anos, mobilizou o melhor da elite militar grega e foi assunto de tantos poemas, constando a Ilíada e a Odisseia, atribuídas a Homero, entre os mais familiares. Casada com Menelau, Helena abandonou o marido para seguir Páris, filho de Príamo, o soberano de Troia, que recepcionou com charme e elegância a nora que acabou por desencadear a destruição de sua cidade.

A mesma tradição lendária sugere que Helena era a mais bela mulher de seu tempo. Como se trata do tempo mítico, ela é, para sempre e invariavelmente, a mais bela mulher, incomparável figura que paira imutável na fantasia do Ocidente. Por isso, sua presença na poesia e no pensamento grego é via de regra positiva e favorável. Na Ilíada, em conversa com Helena junto aos muros de Troia, de onde observa a movimentação da tropa dos aqueus, Príamo comenta que não considera a moça culpada pelos sofrimentos que vêm abatendo sua cidade. Na Odisseia, Helena já retornou aos braços de Menelau, acolhendo em seu palácio a Telêmaco, o filho de Ulisses que procura rastros do pai desaparecido, tendo-se passado outros dez anos, desde o final das lutas nas praias de Troia. Helena, bela e indiferente à passagem do tempo, chora a ausência do herói, ainda que o tenha visto pela última vez quando Ulisses, graças ao artifício do cavalo de madeira, orquestrava a conquista da até então inexpugnável cidadela, onde ela residia.

Sedutora, Helena é também ambígua e contraditória, retrato legado por Homero a seus sucessores. Entre esses, contam-se o poeta Estesícoro, que cogitou ter sido a verdadeira Helena substituída por um simulacro, este, sim, carregado por Páris para Troia, o sofista Górgias, que lhe dedicou uma oração elogiosa, e o dramaturgo Eurípedes, cujas tragédias ressaltam a duplicidade de sua personagem. Com efeito, se em As troianas a moça é perigosa, sem perder o fascínio que atrai os homens, entre os quais o marido Menelau, em Helena, ela mostra-se dócil, saudosa do cônjuge e parceira leal, quando se trata de encontrar um modo de ambos fugirem do príncipe que, no Egito, a aprisiona e deseja tê-la como esposa.

A Helena de muitas faces, sempre, porém, sedutora e fascinante, migra da poesia grega para a literatura ocidental, sem perder a identidade que a faz ímpar. Até Machado de Assis flertou com Helena, em seu romance de 1876, cuja protagonista, assinalada pela personalidade escorregadia e incerta, contudo, sedutora e cativante, antecipa a Capitu de Dom Casmurro.

Do outro lado de Helena, colocam-se as esposas fiéis, que não cansam de aguardar seus maridos, tecendo, no intervalo, “longos bordados” e suportando “mil quarentenas”, conforme canta Chico Buarque. O paradigma por excelência é Penélope, que espera por 20 anos o retorno do trêfego Ulisses. Porém, cabe lembrar Dejanira, a um tanto ingênua esposa de Héracles, que, envolvido com inúmeros trabalhos, não confere a ela a devida atenção, embora, entre uma tarefa e outra, não perca a oportunidade de namorar outras princesas, conforme expõe Sófocles, em As traquínias. Tal como Penélope, Dejanira teme perder o amor do herói, mas seu bordado, convertido em uma túnica envenenada, determina o final trágico do poderoso guerreiro.

Confiantes em suas mulheres, os maridos se deixam levar por sua falta de sagacidade. Ou talvez pela arrogância de vencedor, que os cega. Ou enfim pela imperícia com que lidam com questões familiares. Afinal, boa parte das tragédias encenadas por Sófocles e Eurípedes situa-se no âmbito doméstico, representando uma ou mais das seguintes situações. A primeira diz respeito à exposição do adultério, praticado pelo marido em Medeia, de Eurípedes, e pela esposa em Agamemnon, de Ésquilo. A segunda situação aprofunda o tema dos amores proibidos, ao dizer respeito à paixão de mães pelos filhos, como ilustra a relação entre Jocasta e Édipo, no drama de Sófocles, transposição cênica do mito inspirador da psicanálise freudiana. Também o Hipólito, de Eurípedes, lida com a atração filial, sendo a situação do incesto apresentada de modo deslocado, já que traduzida por Fedra, a jovem madrasta do protagonista da peça.

Não menos complexa, e mais povoada, é a terceira situação, a das filhas amorosas dos pais. Electra e Ifigênia, descendentes de Agamemnon, exemplificam o caso, a primeira protagonizando três tragédias diferentes, assinadas, cada uma, por um dos grandes nomes – Ésquilo, Sófocles e Eurípedes – do teatro ateniense, sintoma, pois, da relevância do tema para o imaginário dos gregos. Mas Antígona, personagem do drama homônimo, não fica atrás, não porque dirija seu afeto incestuoso para o pai, mas porque o desloca para Polinices, seu falecido irmão, em virtude do que perde a vida, provocando, por tabela, o suicídio de Hémon, seu noivo.

Assim colocadas as sinopses dos dramas atenienses do século V a. C., deparamo-nos com situações dignas do brasileiro Nelson Rodrigues. A conclusão sinaliza o fato de que aquelas mulheres de Atenas, ainda que distantes no tempo e no espaço, estão muito próximas de nosso universo psíquico e emocional. Logo, podemos entendê-las como nossas contemporâneas, inspiradoras do melhor que a literatura foi capaz de produzir no passado e exibe na atualidade.

São elas as únicas que repercutem na cultura ocidental? Não, pois, a seu lado, podemos colocar as Eva, Lia, Raquel, Madalena, das Bíblias hebraica e cristã. Mas essa é outra história e outro percurso.

REGINA ZILBERMAN * | * Professora da UFRGS e da FAPA

Publicado:http://zerohora.clicrbs.com.br 05/09/2009

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

JORNADAS CLÍNICAS DA APPOA


Os mistérios da mente e sua capacidade de atormentar e até mesmo enlouquecer os homens têm sido objeto de interesse e estudo tão antigos quanto a própria história humana. Da tentativa de extirpar a “pedra da loucura”, na Idade Média, passando pelo inconsciente freudiano, até as atuais propostas de interpretar e tratar os males psíquicos pela via orgânica, muitos caminhos foram e são percorridos.

Do ponto de vista da psicanálise, a porta de entrada para o inconsciente foi a histeria. Tratava-se, inicialmente, do específico da neurose. O trabalho com o inconsciente levou Freud a formular outras questões a respeito das vias da delimitação do psiquismo, passando por diferentes organizações neuróticas, como a fobia e a neurose obsessiva, mas não se restringiu a elas.

Foi através do estudo do Caso Schreber que Freud articulou grande parte de suas proposições teóricas sobre o campo da psicose, especificamente, a paranóia, bem como aprofundou conceitos importantes como o narcisismo, extraindo desta articulação consequências fundamentais para a prática psicanalítica.

Jacques Lacan retomou essa obra de Freud no seminário “As psicoses” ou “As estruturas freudianas das psicoses”, de 1955-1956. Este seminário foi proferido por Lacan na gestação do estruturalismo na França, corrente de pensamento que elegeu em vários momentos como interlocutor de questionamentos que desejava transpor para a psicanálise.

No terreno específico das modalidades clínicas, ou estruturas clínicas como frequentemente chamamos, a influência estruturalista se faz presente, seja pelo nome que porta, seja porque neurose, psicose e perversão possuem cada uma delas, para além dos matizes e formas diferentes, um núcleo derivado das relações com o Nome-do-Pai.

Mas hoje será que referendaríamos a influência do estruturalismo? E se não, seria agora por influência de uma cultura que não se interessa mais pelo que permanece? Ou por que o invariante da estrutura desmerece as muitas mudanças que um sujeito é capaz de realizar, independente de sua estrutura clínica? Ou ainda, a propalada mutabilidade e velocidade de nosso tempo influenciam a noção de um psiquismo que muda, transforma-se? Os sintomas têm mais relevância que a estrutura de fundo? O aparente importa mais que a causa dele? Se sim, isto implica um fechamento para o inconsciente enquanto instância não aparente?

Seja onde procuremos possíveis influências da cultura atual, encontramos referências à mutabilidade. Importa o que se desfaz, o que se transmuta, e a concepção de sujeito moderno acompanha essa noção. Mas e o sujeito da psicanálise? Como consideramos a tensão entre o fixo e o cambiável? Como incluir a noção de mutabilidade sem recair na imprecisão dos diagnósticos fenomenológicos? Questões centrais do nosso trabalho que permearão o debate proposto para essas Jornadas.