domingo, 29 de junho de 2008

Amores herdados[1]

Iza Maria de Oliveira

O que herdaste de teus pais

Adquire, para que o possua. (Goethe)

Somos herdeiros do amor-paixão romântico, tal como foi concebido no romantismo. Esta herança é relativa a um núcleo amoroso fortemente inscrito nas subjetividades contemporâneas. É certo que ocorreram alterações, no transcorrer do tempo, nas configurações amorosas desde aquele movimento cultural e artístico, inaugurado pela cultura européia do século XIX, que cria a noção de amor romântico como um sentimento profundo, misterioso, nobre e sublime, contendo um objeto idealizado e sua realização se efetivando no plano do individual.

É importante situar isso, pois a noção de amor romântico é historicamente construída e relacionada a uma estrutura social e cultural estabelecida. O psicanalista Jurandir Costa, em seu livro, “Sem fraude, nem favor: estudos sobre o amor romântico” (Rocco, 1999), refere que aquele amor é um complexo emocional profundamente enraizado em nossa cultura. Para ele, poucas pessoas são capazes de duvidar da "universalidade" e da "naturalidade" deste amor culturalmente oferecido como algo sem o que nos sentiremos profundamente infelizes. Assim, sugere que uma crítica à idealização do amor-paixão romântico, para existir chances de propor uma vida sexual, sentimental ou amorosa mais livre.

Neste `núcleo amoroso` herdado se encontra o ideal de um amor bem sucedido, em que comporta uma idealização no objeto amoroso. Ou seja, que o parceiro amoroso responda às expectativas e satisfações do sujeito. Para essa configuração, Freud atribuiu um componente narcísico das relações amorosas. Um dos impasses nos laços conjugais se refere a uma demanda voraz no formato de um imperativo cultural de satisfação absoluta na vida afetiva e erótica. O reverso disso é, na maioria dos casos, uma frustração que pode se estender, imaginariamente, a outras instâncias da vida.

Reinventar versões do amor parece ser a função em nossos tempos, pois como indica Jurandir Costa, o modo de amar no romantismo é só um entre os possíveis. E se o ideal do amor bem sucedido já não encontra suporte na realidade afetiva dos sujeitos modernos, é possível sofrer menos quando não se pode amar conforme o figurino romântico, operando com outras premissas no laço amoroso.

Desta forma, numa referência à citação (e tradução) de Goethe, Aquilo que herdastes de teus pais, conquista-o para fazê-lo seu", indica a possibilidade de reinvenção desta herança do amor romântico. Pois, “Adquirir” não remete a um usufruir desmensurado, tampouco a uma posição passiva diante de um legado. O herdeiro perspicaz não é aquele que tenta perpetuar um mandato de idealização. Um “herdeiro legítimo” tem, portanto, esta difícil missão de reinventar a partir de um legado. Neste caso, um legado do amor-paixão romântico.


[1] Publicado na Coluna, “Descronificando”, Jornal Hora H, 13 de junho de 2008.

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