terça-feira, 13 de maio de 2008

Resenha de PAULA – ISABEL ALLENDE


Paula

Allende, Isabel. Paula. Trad.Irene Moutinho. 9° Ed. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2000. 464p.

Motivos para escrever são infinitos. Sabemos, no entanto, que, para se produzir um bom texto nem sempre é necessário uma grande história. Tampouco é necessário que as letras brotem dos ‘sulcos de nosso ser’, como num movimento vital. Isabel Allende nos oferece um livro em que mescla a história de sua família com a história recente do Chile, produzindo alguns parágrafos em que o ato de escrever se transforma em signo de so-brevivência: cria miragens em um deserto real. Deve escrever como única forma possível de suportar a perda iminente de sua filha mais velha, Paula. Isabel escreve sem saber ao certo se sua filha, muito doente, vai poder ler suas memórias, que destino terão suas palavras. É o que motiva seu livro: à espera de que sua filha se recupere, decide lhe contar sua história. Paula adoece cada vez mais, e seus manuscritos se transformam em uma tentativa de permanência do que ameaça extinguir-se: a vida ao lado de sua filha.
Dias antes de iniciar como docente na Universidade da Califórnia, convidada para trabalhar narrativas com jovens aspirantes a escritores, Isabel se pergunta como se ensina a contar uma história. Às voltas com isso, um pouco atônita (na angústia da véspera), recorre a sua filha, Paula, que, ao telefone, lhe aconselha ironicamente: diga a seus alunos que escrevam um livro “ruim”, pois isso é fácil, qualquer um consegue. Isabel, um pouco ainda sem saber os efeitos que isso possa ter em seus tenros alunos, se lança nessa provocação. Assim, cada um dos alunos esquece sua ‘vaidade secreta de produzir o Grande Romance Americano’, lançando-se com entusiasmo no trabalho textual. Um dos escritos foi publicado em seguida, tendo grande repercussão entre os leitores. Nessas pequenas lembranças, Isabel Allende vai dando forma a sua “Paula”, marcando sua presença na história das gerações de sua família. Pode-se dizer que é um livro que produz uma sobrevivente, pois o caminho por onde nos conduz a perda de um ente amado é de uma radical elaboração de nossa própria morte. Morte em vida: daquele que não mais somos, deixamos de existir daquela forma, que só éramos para aquele que se foi. E, de certa forma, passamos a existir pelas palavras, criação permanente de nossas lembranças. Alguns livros intensos foram gerados em travessias como essa, por vezes tão árida e infinita!
Esse é um escrito que se propõe a contar uma história em que memórias de infância, lembranças coloridas com as tintas das fantasias infantis, conversam com a história do Chile das décadas de 60/70.
Isabel porta um sobrenome que a convoca a tomar posição: passa de uma jornalista de uma revista de moda, sem pretensões partidárias, a uma fiel defensora dos direitos humanos durante o regime militar vigente a partir do golpe de Estado que tira Salvador Allende da cena política e implanta um governo com perseguições e extermínios cruéis. Relembra-nos o trágico 11 de setembro de 1973, quando o presidente eleito nas urnas é levado a cometer suicídio – versão também aceita por sua família. “Paula” nos fala das mudanças ocorridas no Chile até se tornar inevitável o exílio da autora – longos anos distante de seus familiares e de seu país. Tive a alegria de encontrar referências importantes a Pablo Neruda que, segundo a autora, faleceu ‘de desgosto’ na sua “Isla Negra”, doze dias após a morte de Salvador Allende, seu amigo pessoal. Seu funeral foi acompanhado, não sem temores, por poucos, nas ruas de Santiago, enquanto corpos de presos políticos eram arrastados pelas águas geladas do rio Mapocho. Temos a oportunidade de irmos, várias vezes, com a família Allende, ao Cerro Sán Cristóbal. No início do livro, subimos com a criançada para piqueniques em família e visita ao zoológico e, algumas páginas depois, descemos esse mesmo Cerro acompanhando chilenos que necessitavam ajuda (de Isabel) para exilar-se do país.
Essas e muitas histórias se passam ao pé da cama de Paula, em um hospital público de Madri. Vítima de uma doença hereditária, que a lança em poucos dias em um coma profundo, na ânsia de não partir ainda, vida e morte são escritas lado a lado. Essa escritora, com sua espiritualidade pagã, nos ensina a difícil arte de deixar partir aqueles que já foram, mas que seguem ao nosso lado, partes de nós mesmos, nutrindo nosso desejo brutal de que não partam jamais.
Para quem já leu o ‘clássico’ “A Casa dos Espíritos”, encontramos ainda informações preciosas sobre o processo criativo da autora: construção do enredo e de personagens, bem como as repercussões desse livro em sua vida pessoal.

“Escrever me faz bem, apesar de ser às vezes penoso, porque cada palavra é como uma queimadura. Estas páginas são uma viagem irreversível por um longo túnel, não enxergo a saída, mas sei que deve haver alguma; impossível voltar atrás, tudo é questão de continuar avançando passo a passo até o final.”

Como proposta, sugiro que leiam sem pressa, pois o sabor desse livro nos incita a fazer o inverso: devorá-lo em uma sentada!

Fernanda Pereira Breda

Copiei do site da APPOA -Associação Psicanalitica de Porto Alegre

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